segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O Rosto

Era um artista esculpindo minuciosamente um rosto.

O rosto de uma modelo careca.

Esse rosto interagia - porém não falava, e era uma cópia quase perfeita.

O rosto reagia aos toques e comunicava-se através de expressões.

O rosto sorria ao ser tocado e, através de suas expressões, conseguia quase que por milagre expressar todos os sentimentos humanos.

O artista estava orgulhoso de sua obra, que não finalizara até o momento de sua morte.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

"Pensar e ser é o mesmo" Parmênides

Qual a distinção entre o que sou e o que penso? Aparentemente, ambas as coisas são fundidas, logo somos aquilo que pensamos. Então, através do desejo, temos condições de moldar nossa existência através de nossos atos.

Todas as minhas experiências são por mim processadas e, aliadas à minha predisposição genética, faz-me o que sou hoje. Se eu agisse, pensasse e reagisse a isso de outra forma, seria outra pessoa e não eu. Onde se encaixa nesse cenário o livre-arbítrio? Se nossas escolhas são direcionadas por um pacote de experiências e pela personalidade – cuja própria genética também não trata-se de uma decisão – seriam elas realmente escolhas ou somente um caminho inevitável, partindo do que se é e de como o mundo se apresenta para nós?

Mas, se ser é de fato o mesmo que pensar, ele estaria vinculado necessariamente à questão da existência enquanto ente pensante, excluindo-se assim tudo o que é não-pensante do âmbito do ser. O ser, nesse caso, está além do pensamento, não se relaciona com ele. A visão do ser exclusivamente pensante, restringindo a uma perspectiva humana, é por demais limitada. Talvez o pensamento tão-somente legitime aquele mesmo ser que pensa.

Duas questões a serem desenvolvidas a respeito desse tema poderiam ser: a) O ato de pensar está inserido no ser ou é o próprio? b) O pensamento nada mais é do que ato do ser pensante?

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Programa "Sem Limites", da Globo

Recentemente, conversei com algumas pessoas que se mostravam horrorizadas com as atrocidades que a Globo promove no seu (suposto) reality show "No Limite". Também, pudera: as atrocidades que os participantes precisam fazer para alavancar a audiência do programa são completamente repugnantes.

Mostrar em rede nacional pessoas comendo olhos de cabra, peixe vivo e ovos chocados, com pintinhos completamente formados e prestes a nascer ajudam a banalizar o valor da vida para além de nossa própria espécie. Aconteceram protestos em caráter nacional, parcamente divulgados pelos meios de comunicação, em especial o do Rio de Janeiro, que foi em frente à sede da Globo e foi noticiado pelo portal Terra. O manifesto que atraiu os participantes foi o seguinte:

"A indignação toma conta das pessoas providas do mínimo de sensibilidade. A Rede Globo de Televisão, famosa pela manipulação de notícias, nos brinda agora com baixaria criminosa em busca de audiência.
O programa NO LIMITE incita seus participantes a cometerem crimes ambientais, envolvendo a crueldade com animais (como partir peixes vivos ao meio com dentadas, comendo-os ainda vivos; retirar pintos de dentro de ovos, comendo-os em seguida; perseguir e matar galinhas, forjando um falso estado de necessidade), em troca de dinheiro. Há também a apologia a estes crimes, além de formação de quadrilha para cometê-los.
Em contrariedade com a lei, a Globo deseduca as presentes e futuras gerações, quando deveria promover a educação ambiental, por meio de provas inteligentes e éticas.
Tortura e abuso criminoso contra animais indefesos não é a lição que queremos receber em nossas casas. Animais não são coisas, nem propriedade humana a ser abusada de acordo com interesses comerciais de uma emissora de TV.
Em nome desta indignação, os brasileiros que ainda possuem algum senso crítico exigem que as autoridades constituídas tomem as medidas cabíveis para coibir e punir os atos criminosos desta emissora e seus mandatários, que só colaboram para a formação de uma sociedade cada vez mais injusta, desigual e sem qualquer perspectiva ética.
Portanto, estão convocadas manifestações em frente às sedes e sucursais da Rede Globo em diversas cidades brasileiras, exigindo o fim de suas atividades criminosas, além do posicionamento das autoridades legais."

Diversas comunidades no orkut surgiram em repúdio ao programa e a mobilização surtiu efeito. No Limite foi proibido de continuar divulgando os maus-tratos aos animais, graças à Associação Protetora dos Animais:

O juiz de Direito Gustavo Henrique Cardoso Cavalcante, da Comarca de Trairi, determinou "a imediata proibição da gravação e exibição, no programa "No Limite", de provas que envolvam animais de quaisquer espécies, bem como a gravação e exibição de cenas em que se submetam animais a maus tratos". A decisão foi proferida no dia 15/9 e o diretor geral do programa, José Bonifácio Brasil de Oliveira, o "Boninho", foi intimado para o cumprimento da ordem, sob as penas legais.

O processo nº 2009.0026.8968-8/0 é uma ação civil pública ambiental (com pedido liminar) de autoria do MP/CE contra a TV Globo (Globo Comunicações e Participações S/A). O MP acatou a denúncia da União Internacional Protetora de Animais (UIPA) que enviou cenas gravadas do programa nos dias 30/7, 2/8, 13/8 e 16/8, nas quais os participantes matam galinhas com golpes de faca, comem olhos de cabra, assim como se alimentam de peixes vivos e "embriões" de galo.
Em sua decisão, o magistrado afirma que "o tratamento ao qual foram submetidos os referidos animais vivos é de translúcida e gratuita crueldade e objetivaram tão somente o transpor de uma prova e a conquista de audiência televisiva com a exibição de cenas bizarras, atraentes a muitos, em detrimento do respeito aos demais seres vivos e à vida, fazendo-se uma dissimulada apologia à indiferença de sua destruição".

O juiz fixou ainda, multa diária de R$ 50 mil para o caso de descumprimento da proibição, por cada programa exibido em desobediência à determinação judicial, com base no artigo 798 do CPC e artigos 4º, 5º, 11 e 12 da lei 7.347/85.

Quem, assim como eu, não assiste a esse programa medonho, pode se certificar das atrocidades nesse link: http://nolimite.globo.com/NoLimite/Noticias/0,,MUL1269277-17299,00-REVEJA+PROVA+ESTOMAGO+TESTA+LIMITE+DOS+PARTICIPANTES.html
Fontes:
http://portalimprensa.uol.com.br/portal/ultimas_noticias/2009/09/16/imprensa30872.shtml
http://www.anda.jor.br/?p=20799
Reportagem do Terra sobre os manifestantes: http://diversao.terra.com.br/nolimite4/interna/0,,OI3947105-EI14145,00-Grupo+se+reune+em+frente+a+Globo+para+protestar+contra+No+Limite.html

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

"Cogito, ergo sum"

A questão da existência talvez seja uma das mais enigmáticas dentre as questões fundamentais da vida. Não faz sentido crer que eu não existo se eu penso, então a angústia proveniente da dúvida absoluta muitas vezes pode nos fazer admitir certezas prontas e acabadas; certezas estas, contudo, que também são dignas de investigação.

A semente da dúvida, plantada no nosso inconsciente, pode nos trazer frutos - um alento para a investigação racional. A coragem é latente e é condição necessária para tal, onde o "viajante" goza num orgasmo intelectual, ainda que tenha descoberto ainda mais perguntas do que respostas.

A questão da existência passa pela consciência, já que se alguma coisa existe, pode-se partir do princípio de que aquele que pensa de fato produz alguma coisa, donde é factual o próprio pensamento em si e, portanto, aquele que o detém é igualmente factual, ou seja: existe.

Essa seria a primeira certeza absoluta no combate ao relativismo, se as coisas fossem assim tão simples. É difícil duvidar da própria existência quando aquele que é ato percebe que alguma coisa acontece no que denomina-se vida. A ausência de possibilidade de uma gnose, nesse caso, relacionar-se-ia com a morte, ou simplesmente a idéia do nada, uma ausência sem passado nem futuro.

A existência deveria ser, para nós, algo absolutamente irrefutável e a angústia dessa impossibilidade remonta o drama da finitude. Há uma forçosa relação de parentesco onde as conseqüências e o fim é sempre mórbido: ainda que a existência seja factual, em breve ela deixará de sê-lo.

Não há escapatória para a não-existência, e ainda que o pensamento seja um alento de esperança para a possibilidade de existirmos, o sentido das coisas precisa ser urgentemente importado para que seja possível suportar a dúvida absoluta e a angústia de pensar a existência.

Obs.1: Tenho evitado "papagaísmos", então o leitor querendo saber o que diz especificamente Descartes ou a História da Filosofia em geral, recomenda-se verificar na fonte.
Obs.2: Dane-se a "reforma" ortográfica.




Uma pequena historinha (com H). Clique para ampliar!




quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Charges de Moisés!


Profeta espertinho...



Moisés nas Olimpíadas!!



O primeiro e último dia de trabalho no novo emprego: salva-vidas!

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Eros (Platão)

Uma das coisas mais belas é a sabedoria e Eros é amor pelo belo, de modo que é forçoso dizer que Eros é filósofo e, sendo filósofo, está entre o sábio e o ignorante

Platão

Platão começa relacionando a beleza com a sabedoria, ao passo que invoca a relação de Eros com a primeira. Uma vez que Eros representa o amor pelo belo (talvez a verdade, objeto de desejo do filósofo) surge a necessidade em Platão de diferenciar o mesmo de Eros, que não pode ser considerado um amante da sabedoria tão-somente por representar o amor pelo belo, o que seria por demais "forçoso".

Caso, porém, concebêssemos que Eros trata-se de um filósofo, o teríamos numa posição mediana, ou intermediária, entre o sábio - ou a verdade em sua plenitude - e a plena ignorância, ou seja, Eros está no meio do caminho e estático em relação aos dois extremos, sendo a conotação de sabedoria atribuída ao seu vínculo com o belo.

O "belo" é uma qualidade da sabedoria, assim como Eros é o amor pelo belo, o que não significa dizer que Eros se aproxima do todo [nesse caso, a sabedoria] mas só a uma característica dela, que por ser apenas uma parte de algo maior não pode ser considerada na plenitude, o que nesse caso seria o fato de ser ou não filósofo.

Portanto, pela sua relação com o belo e sendo este qualidade da sabedoria, Eros estaria entre a sabedoria e a ignorância.

sábado, 22 de agosto de 2009

Rapidinhas...



  • Sempre estamos buscando algo que dê sentido à existência.
  • A felicidade nunca é 100% plena, o que aniquilaria o desejo.
  • Nossa sociedade é religiosa, e amiúde num sentido extremamente negativo.
  • Antes de ser "bom" ou "mau", se é ético como condição para a existência.
  • Um "Moisés" nos nossos dias provavelmente seria diagnosticado como um esquizofrênico, com "ideação delirante sistematizada", "alucinações auditivas", "idéias de influências" e "discurso mítico", sendo recomendado permanecer em tratamento psiquiátrico continuado.
  • A filosofia bebe de argumentos não-filosóficos de diversas áreas. O chamamento para o pensar pode vir de várias fontes, até que adquira um 'trato' filosófico.
  • Temos uma tendência natural de enquadrar [rotular] as coisas. A confusão, pelo não-enquadramento inevitavelmente deixar-nos-á inquietos.
  • O homem constrói a cultura ou a cultura constrói o homem?
  • Alienação não está, necessariamente, vinculada à felicidade. Também pode estar perfeitamente associada ao sofrimento.
  • As diferenças são fundamentais, haja vista que "iguais" não podem evoluir.
  • Na fenomenologia, basta um acontecimento para tomá-lo como viável. Mas uma "coisa" também não tratar-se-ia de um fenômeno?
  • A psicologia é pragmática, baseada no empirismo. A grande questão não é uma busca do real, mas fundamentalmente a resolução de um problema individual. Para a psicologia, há o egoísmo, quando na Filosofia o homem é um animal profundamente ético. Não conhecer um homem generoso, por exemplo, não implica para a Filosofia que não possa ser possível existir um homem generoso.
  • A linguagem é uma tradução aproximada, às vezes tosca, do pensamento. A linguagem por si só não é o "índice" do ente.
  • O "cuidado" é anterior à consciência de cuidar-se.
  • Não basta a boa vontade humanitária de educadores bem-intencionados para promover a consciência crítica.
  • A Indústria Cultural tem justamente a função corruptora de criar falsos sujeitos, mediante a idolatria.

domingo, 16 de agosto de 2009

Autoridade ilegítima sobre mim

Não reconheço a lei da situação
Quando a vida estremece desde o princípio
Atordoando-me a razão
No suficiente porre que anestesia o ofício.

N'adoração de um povo pobre em maldição
Não retirareis de mim o lícito
E noutra terra, sem colaboração
Abandono o caos que tortura este município.

Não há irmão que a mão estenda. Então
A democracia tirana que sacia o malefício
Maneja a faca que dilacera Platão
Sem perceber iminente precipício.

Este povo pobre sem guarnição
Vê sua carne apodrecer e sorri por princípio
Corrobora neste país a anestesia da diversão
Corroendo a mente num tempestuoso vício.


Esta autoridade ilegítima sobre mim corrompe-me a voz; mantém seu poder através do medo e da auto-preservação, enquanto obriga-me a decidir quem terá o "direito" de mandar em mim pelos próximos anos. Nego-me a aceitá-los. Não concedo-lhes este poder e não tenho representantes nessa democracia prostituta.

A seguir, um texto interessantíssimo de Louise de La Vallière:
Na democracia, um partido sempre dedica suas principais energias tentando provar que o outro partido não está preparado para governar. Em geral, ambos são bem sucedidos e têm razão. A democracia substitui o compromisso feito por uma minoria pela eleição feita à mercê de uma maioria incompetente. A democracia constitui necessariamente um despotismo, uma vez que estabelece um poder executivo contrário à vontade geral. Sendo possível que todos decidam contra um, cuja opinião pode diferir, a vontade de todos não é, então, a de todos, o qual é contraditório e oposto à liberdade. A política dos governantes sábios consiste em esvaziar a mente dos homens e encher-lhes o estômago. Um povo que sabe demais é difícil de se governar. Aqueles que julgam promover o bem-estar de uma nação, espalhando nela a instrução, enganam-se e arruínam a nação. Manter o povo na ignorância: eis o caminho da salvação. Que é a democracia senão a arte de mentir a propósito? Há uma infinidade de erros políticos que, uma vez cometidos, tornam-se princípios. Quando a briga entre facções for intensa, o político se interessa, não por todo o povo, mas pelo setor a que ele pertence. Os outros são, na opinião deles, estrangeiros, inimigos, e até mesmo piratas. Não nego os direitos da democracia; mas não me iludo a respeito de como se fará uso desses direitos enquanto for escassa a sabedoria e abundar o orgulho. Os eleitores e os eleitos. Se estes são maus é porque aqueles são piores. A democracia é o processo que garante que não seremos governados melhor do que merecemos. A diferença entre uma democracia e uma ditadura consiste em que na democracia você pode votar antes de obedecer as ordens. A democracia não é mais que um poder arbitrário constitucional que substituiu outro poder arbitrário constitucional. Os políticos fazem política como as meretrizes fazem amor: por ofício. A democracia é a arte de mascarar de interesse geral o que não passa de simples interesse particular.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Vingança






Certa vez, conversando com um amigo, falávamos sobre "vingança" e ele me relatara alguns casos pessoais no qual foi vítima desse instinto humano. A conversa desencadeou na questão da própria natureza humana e de como a razão poderia ser capaz de alterar o rumo de nossas reações puramente instintivas.



No curso da história da humanidade, o sentimento de vingança esteve presente em todas as sociedades, e diversas atitudes foram motivadas por ele. É factual que a natureza humana tem um espaço cativo para a inveja e a vingança; dentre outros sentimentos perversos, porém podemos, por intermédio da razão e conseguinte reflexão, ponderar o sentido de reações motivadas por tais instintos e deixar que elas atrofiem-se em nós, em graus relacionados com a própria capacidade de raciocínio. Por outro lado, aquele com baixo estímulo à reflexão amiúde desemboca para uma personalidade de sentimentos primitivos, e falo não só de vingança e inveja, como também violência e intolerância.



Voltando à questão específica da vingança, Friedrich Nietzsche percebe como acontecimento mais significativo, motivado por ela, a revolução escrava acarretada pelo judaísmo e cristianismo sobre a casta dos nobres e guerreiros. Nessa vingança, voltada sobre os nobres, inverteram-se as premissas, os valores; antes o bom era o nobre; agora o bom é o comum. Isso é o que Nietzsche chama de transvaloração, um processo operado através de vingança por sacerdotes. Estes são homens que são condutores da massa e, segundo nosso autor, adulteradores da vida. O comportamento destes sacerdotes é marcado pelo asceticismo. Daí ser chamado de ideal ascético o local para onde é convertida a impossibilidade o ressentimento diante da vontade de poder/eterno retorno. Asceticismo é sublimação desse ressentimento em uma nova valoração, agora uma moral de escravos, não mais uma moral nobre. E a "nova" moral, para Nietzsche, é uma forma de os fracos dominarem os fortes.



Assim, a vida eternamente retorna como impulso para as realizações de suas possibilidades. Vida, segundo Nietzsche, é o “movimento sempiterno de diferenciação da vontade”, tendo este sempiterno o caráter do eterno retorno, que determina o instante em sua circularidade. Vontade de poder/eterno retorno diz respeito a toda e qualquer dimensão do acontecimento de realidade, narrando, enquanto existência a assunção fundamental da vida em sua cadência, vigência, instauração e propriedade. A vontade de poder não é somente essência, mas uma necessidade.

terça-feira, 28 de julho de 2009

A Oração do Espelho

Aleluia! - Disse o irmão.
Que pena dá a fé na penúria
Sem segurar a hipócrita fúria
De tuas razões sem razão.

Desprezo ver-te em crença
Estando de costas ao altar.
Negas, pois, assim teu morto par:
Não lhes é permitido pecar em sentença.

Oras por tua própria consciência,
Fatualmente negas a própria cristandade;
Tu que falas - e na verdade
Mais ainda pecas, com zumbis em conivência.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Maria Joaquina

Magno ser, que dizes hoje para mim?
Grande faca do mugido, que sobra só a gemer
Se sou um dos poucos demônios assim:
Elegantes, deste inferno do descrer.

No alto mar, que isola quaisquer lembranças
Aturando o outro pensamento que, de tão leve,
Leva embora. Matanças morais, lambanças
Não desfaz o véu que sinaliza à plebe.

Maria Joaquina, que desde menina,
Foi presa sem dó nem piedade, por teu Pai
Que usurpou-a do direito de pensar sua sina
Obrigando-a negar a si, enquanto distrai.

Somatório de todas as coisas, prestes
A responder prontamente tuas questões.
Arrancando brutamente tuas vestes,
Banindo qualquer desejo, sem perdões.

Mas és criação, não criatura nem criador,
Partiu de manto que se desfez. Como a Maria,
Recobro-me a lucidez, amando-me sem dor
Mas não aos homens, como vossa criação o faria.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Mitos

Pouco se percebe que o mito está presente a todo tempo nos nossos dias. Nossas crenças, como um todo, baseiam-se em concepções mitológicas, seja a mitologia predominante da atualidade – a cristã – seja uma crença qualquer em que não se sabe os meios do objetivo atingido. Estamos rodeados de mitos – e muitas vezes é até necessário que seja assim.

Nada poderíamos fazer se não estivéssemos rodeados pelos mitos. O mito exerce uma função que, se não é esclarecedora, anestesia nossas angústias em relação ao que simplesmente não podemos compreender. Precisamos aceitar que se tomarmos o remédio que o médico nos recomendou, ficaremos sarados de uma enfermidade. Não podemos nos questionar se nos foi destinado um veneno, sob o risco de não ingerirmos uma substância que possa curar nossa chaga. Nesse caso, a dúvida pode trazer um malefício irreparável. Contudo, há variância de acordo com o referencial: assim como os mitos religiosos e até mesmo na salvação pela espada, que na história da humanidade já vitimou tantas pessoas em todas as épocas de nossa história, dentre os mitos práticos recentes, talvez o nazismo tenha sido o mais destrutivo com sua fantasia de uma “raça superior”, utilizando-se de propagandas, filmes, discursos inflamados, etc., sendo capaz de mobilizar toda uma nação em volta de um devaneio baseado na força do mito.

O mito também é pedagogicamente importante, por ir onde a razão não alcança e também por não ser cansativo – ao contrário, não raro fascina. O mito baseia-se, como um todo em arquétipos e simbologias que tangem o emocional, lidando amiúde com estruturas “universais”, já que oferece explicação para temas como a morte, a vida e os fenômenos naturais. Contudo, o misto de transgressão, sentido e falta de veracidade fazem com que o mito tenha um alto grau de periculosidade. Os gregos foram riquíssimos em mitologia e hoje temos como conseqüências arquétipos universais, provenientes daquelas mitologias helênicas.

A Bíblia como livro mitológico é extremamente rica, com todas as suas explicações para a origem das coisas, o apocalipse, o homem que é Deus, a transgressão de Adão e Eva, a propagação do ato de comer o que seria o corpo de Cristo (antropofagia) ou beber o seu sangue, etc. Os próprios rituais (repetição) também fazem parte do mito, como por exemplo a crença de que um gesto pode trazer uma graça. A problemática em relação à Bíblia (ou qualquer outro livro religioso) vem a partir do momento em que tomamos a Bíblia pelo lado científico e racional, que é ausente. A confusão desses valores pode trazer prejuízos intelectuais.

A semente da dúvida que foi plantada no nosso inconsciente pelos primeiros filósofos que, ainda cercados de mitologias e explicações inspiradas nos deuses para os fenômenos naturais, hoje tem imensuráveis frutos para o nosso pensamento ocidental. O mito é um conhecimento válido do ponto de vista da construção da epistemologia e da estruturação do pensar. O mito tem os seus pressupostos não esclarecidos, e muito de sua força é perdida na concepção do mito como simples “lenda”.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Filosofia e Felicidade

Raul Seixas falou, certa vez: “É pena eu não ser burro. Assim, não sofria tanto”. Partindo do princípio que o próprio Raul fosse um cara inteligente, para efeito da questão, será que realmente a sabedoria priva o homem da felicidade? Há sentido no que se fala por vezes que uma vida alienada é mais prazerosa de ser vivida?

Muito se diz a respeito. A opinião predominante sobre quando se refere à relação “conhecimento/sabedoria x felicidade” é de que o alienado tem mais hipóteses de viver uma vida tranqüila, em relação àquele buscador da verdade. A partir do momento em que não se conhece o problema, não se vive o mesmo. As pessoas costumam agir tão-somente de acordo com os resultados. É um utilitarismo às avessas, já que pouco se pensa a respeito do preço que se paga para atingi-los.

Todos nós somos alienados, mas em graus e assuntos diferentes. Falo da alienação como a ausência de conhecimento a respeito de algo, e não no sentido marxista. No mais alto grau, somos alienados a respeito de tudo, já que não é possível o conhecimento factual das coisas em si. Mas não é essa a abordagem necessária quando se questiona a alienação no sentido de uma pessoa que não questiona a si ou as coisas e acontecimentos ao redor de si. Essa é uma outra faceta.

Suponhamos uma pessoa que considere que sua vida ganhou sentido quando abençoada por um pastor corrupto de uma igreja hipotética, já que pastores corruptos não existem. Essa pessoa era entupida de dívidas, alcoólatra, sua mulher era prostituta e seu filho usava drogas. Esse homem – vamos chamá-lo Josué – ouviu falar que seu vizinho se regenerou quando “aceitou Jesus”, e decidiu, num momento de desespero, conhecer o Pastor “João”, que supostamente fizera maravilhas pelo seu vizinho. Pois bem, nosso amigo Josué vai com a cabeça completamente aberta para o culto, ele quer mudar de vida. No teatro, o pastor vende-lhe definitivamente a idéia do pecado e do demônio e arrebanha-o entre suas ovelhinhas. Josué passa a destinar uma parte de seus escassos rendimentos à Igreja, e a partir deste momento sua fé destina-o a parar de beber. Ele jura que foi agraciado pela Igreja e jamais conseguiria tal façanha sozinho. E isso não é tudo. Seu filho, que estava metido em drogas começa a freqüentar o culto e sua mulher parou de rodar a bolsa na rua. Concomitantemente, Seu Josué abdica de si e de suas individualidades para entregar sua alma a Deus. Ele não é mais Josué, é uma ovelhinha de Cristo. Está quase comendo capim, de tão devoto. Devido ao seu novo estilo de vida, não toma mais “mé” e tem mais tempo – arruma até um emprego fixo e diz que deve tudo graças ao Pastor João. Nesse nosso exemplo, podemos considerar que o Seu Josué foi bem sucedido, já que a vida era um caos pleno. Ele estava com o pé na cova e sua família não tinha rumo.

Contudo, afastar-se da realidade também tem seu sentido questionado. Para Siddharta – o Buda – “todo remédio é veneno”. E o preço desse remédio é alto. Os efeitos colaterais envolvem uma cultura inteira e ele agora nega a si para servir ao seu amigo imaginário (ainda que a hipótese teísta seja um fato, é pretensioso por parte da religião definir sua natureza). O que pode levar à “exaltação” também pode envenenar. O fenômeno atual a respeito do ceticismo religioso leva a dois extemos – acreditar “em tudo”, referindo-se à crença exagerada e sem um “filtro” de informações comparadas e imparciais, aumento e cultivo do misticismo e crendices em geral; ou um ceticismo que gera a crítica que produz o tal filtro que seleciona o que será aceito pelo entendimento como mais próximo do factual (já que quem vê muita coisa, tende a não crer em nada, assim como diz-se que surgiram os primeiros céticos – os mercadores viajantes, que conheciam diversas culturas). Na prática, temos visto elevar os números de estatísticas tanto em relação aos fundamentalistas quanto aos agnósticos e/ou ateus. No nosso exemplo, Seu Josué jura que o Pastor foi responsável por suas conquistas e pagará por isso o restante de sua vida, além de negar a humanidade que existe em si e até mesmo o que caracteriza sua individualidade. É óbvio que estou usando um exemplo, e por sê-lo, é bem específico; não significa que este seja o único exemplo de alienação no uso corrente da palavra.

Certa vez, li que “mais vale um Sócrates infeliz do que um porco feliz”. Mas, ainda que isso seja verdadeiro, por que diabos o Sócrates precisa ser infeliz? Não é o próprio conhecimento que liberta a alma? O hábito de buscar entender o que se passa ao redor pode nos livrar de situações complicadas. Não me refiro ao entendimento, mas à busca – ela é o que temos de real. Aprender a viver, aprender a morrer, encontrar subsídios que façam sentido para o aqui e agora também dão qualidade de vida. Viver o eterno presente é ser intenso. E vida com qualidade é mais importante do que o tempo pelo tempo. Para Aristóteles, dentre as possibilidades de felicidade, uma delas é através do conhecimento, como Filósofo. A Filosofia parte da necessidade da busca de um sentido, e divagar nesses caminhos também proporciona um gozo intelectual.


O “presente é o agora que passa”, segundo Santo Agostinho, e nesse sentimento de urgência não há desespero. Apenas a noção de que o prazer é importante e necessário. E quando percebermos a morte, entregar-nos-emos com a sensação de dever cumprido. Como no epicurismo, se por um acaso deixarmos de existir, significa que o sofrimento também será ausente. Nossa tarefa nesse mundo poderia pode ser assim definida: sejai feliz! – eis o verdadeiro sucesso.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Da aplicabilidade da Ética

Recentemente, fiz um estudo para apresentação de um Seminário de História da Filosofia Contemporânea. A seguir, vou reproduzir alguns trechos e, em seguida, alguns dados da ONU que reforçam os princípios pelos quais se baseiam a "Ética Prática", no tocante ao respeito pela vida dos animais não-humanos. Ao estudarmos a Ética, nos deparamos com questões complexas e amiúde polêmicas, devido à sua aplicabilidade e sua entrância em todos os setores da sociedade, sejam ou não acadêmicos.

A ética prática, que consiste na aplicação da ética ou da moralidade, é amplamente analisada no livro utilizado como referência para o presente estudo, extraída de livro de mesmo nome, do filósofo australiano Peter Singer. Um dos mais influentes pensadores de Ética na atualidade, Singer argumenta muito racionalmente a respeito de temas já conhecidos no setor, mas igualmente traz diversas novas abordagens à aplicabilidade da Ética, o que torna sua obra fundamental para aquele que deseja aprofundar-se no estudo da mesma e nos problemas atuais da filosofia. Suas abordagens principais são a questão do tratamento dispensado às minorias étnicas, igualdade para as mulheres (sexismo), uso de animais em pesquisas e fabricação de alimentos, preservação do meio-ambiente, aborto, eutanásia e obrigação dos ricos para com os pobres.

A visão da Ética Prática é utilitarista e baseia-se em princípios como o da universalizabilidade e da igual consideração de interesses que, ao serem analisados profundamente, com coerência e lógica filosóficas, dificilmente encontramos uma contra-argumentação satisfatória – o que torna seu estudo tão desafiador quanto interessante.


(Clique para ampliar)

Nossos juízos éticos, como um todo, estão em constante desenvolvimento. Uma mostra disso é o critério técnico atual de “morte cerebral”, para decidir quando alguém está morto, a evolução da questão do aborto (o Brasil é hoje, excluindo-se os países teocráticos, um dos países mais conservadores em relação ao aborto e ainda assim palco de tantas polêmicas relacionadas ao tema), e até mesmo quando decidimos desligar a máquina que mantém uma pessoa em estado vegetativo viva. É importante que mantenhamos o espírito aberto sobre estas coisas e que permaneçamos em alerta sobre o que devemos fazer e os motivos para tais decisões.

A universalizabilidade, para Singer, é fundamental para um agir ético coerente. Quando adota-se uma postura moral, deve-se considerar as questões do ponto de vista de todos que serão afetados. Isto significa que temos de nos colocar imaginariamente na posição deles, assim como na nossa, e de decidir o que fazer depois de dar tanto peso às suas preferências como que damos às nossas. Se fizéssemos isso relativamente às pessoas mais pobres que vivem nos países menos desenvolvidos, veríamos o quanto gastamos com supérfluos que podem muito bem serem revertidos em saciedade das necessidades básicas de outras pessoas, e isso pode fazer uma grande diferença às pessoas miseráveis no mundo. Se déssemos aos interesses desses pobres o mesmo peso que damos aos nossos, como deveríamos fazer, daríamos dinheiro a organizações que ajudam essas pessoas a superar sua pobreza e a tornarem-se auto-suficientes.

A questão da exploração dos animais, que recebe a devida atenção na obra do presente estudo, é abordada pelos mesmos princípios que satisfazem o próprio entendimento humano a respeito da igualdade. O que faz sentido para a igualdade entre os homens – a igual consideração de interesses – torna imperativo que alarguemos a abordagem para os animais senscientes e/ou autoconscientes. O fato de os animais não pertencerem à nossa espécie não justifica o desrespeito pelos seus interesses, assim como não justifica desconsiderar os interesses de outro ser humano baseando-se na sua nacionalidade ou cor da pele. Quando nos colocamos efetivamente no lugar dos animais, vemos que os interesses que a exploração pecuária intensiva serve – obrigando-a, por exemplo, a produzir carne de porco criando estes animais em jaulas tão estreitas, que eles mal podem se mexer – não pode justificar o sofrimento dos porcos. Para nós, comer carne de porco é apenas um luxo, um prazer do paladar, mas para os porcos, significa uma vida inteira de miséria, dor, tédio e privação. Isto é algo que não se pode defender de um ponto de vista que considere o interesse dos animais, segundo as atribuições do critério da igual consideração de interesses.

A questão do meio-ambiente também merece um capítulo a parte, haja vista que a humanidade tem entrado numa areia movediça na qual não enxerga salvação, mas apenas paliativos que podem retardar o caos que se prevê para o futuro: a aceleração do efeito estufa. Pouco se divulga, no entanto, que a maior causa desse mal é a pecuária – o petróleo e suas conseqüências vêm em seguida. O confinamento do gado, que não só traz uma vida de miséria, dor e privação, como se não bastasse, também é co-responsável pelo problema global. Soma-se a isso as queimadas nas nações produtoras de carne, especialmente as mais subdesenvolvidas, como o Brasil, para a criação do gado de corte e para a produção dos grãos destinados à alimentação dos mesmos. O solo, após anos de pastagem também fica inutilizável – inclusive para plantação – o que obriga os produtores buscar novas terras para exploração. Isso sem contar com outros problemas antropológicos, como no caso específico do Brasil que os fazendeiros estão em constante guerra com os nativos indígenas em busca de mais terras. Uma guerra que vai muito além da terra, proveniente de todo o mal que a cultura da carne desencadeia.


O princípio da consideração de interesses implica que a nossa preocupação com os outros não deve depender de como são, ou das aptidões que possuem. É com base nisso que podemos afirmar que o fato de algumas pessoas não serem membros de nossa raça não nos dá o direito de explorá-las e, da mesma forma, que o fato de algumas pessoas serem menos inteligentes que outras não significa que os seus interesses possam ser colocados em segundo plano.

É importante que questões centrais da filosofia não sejam omitidas, e fiz questão de trabalhar com a aplicabilidade da Ética por ser uma área incipiente na filosofia e de tanta relevância nos nossos tempos. A reflexão sobre o mito da sacralização da vida humana não pode parar no estágio da contestação; é fundamental que se vá além e apreciarmos as conseqüências da maior responsabilidade do homem para consigo e para com a natureza.

A universalizabilidade da ética se faz necessária, assim como o princípio da igual consideração de interesses, para uma factual postura ética – e necessariamente não-demagógica – a respeito de temas que podem, inclusive, determinar o futuro da humanidade, como a questão ambiental.




segunda-feira, 8 de junho de 2009

Sobre a importância do questionar

Questionar é a base para a aquisição do conhecimento. O próprio perguntar, em si, a princípio, subentende ausência da resposta, da cognição, e supõe por conseguinte a necessidade de conhecê-la. Precisamos ter estima ao que não conhecemos – já que a gama de possibilidades é tão vasta. Há cegueira pior do que não querer saber?

Sabedoria não é o mesmo que “saber”; haja vista que o último pode limitar-se ao acúmulo de conhecimento, que não necessariamente está ligada à capacidade de raciocínio. Sócrates era relativista e já foi definido pelo professor da UFPE Dr. Marcelo Pelizolli até mesmo como um sofista, porém com uma forte postura ética. Apesar do “só sei que nada sei” clássico socrático, o próprio admite a existência de uma verdade e/ou ética. Acontece que, para os sofistas, “o homem é a medida de todas as coisas”, então ocorre uma relativização generalizada. Tudo passa a ser relativo, inclusive os valores éticos/morais. Desta forma, o sofista não constrói conhecimento ou mesmo possui uma moral.

Ainda que no método socrático a própria pergunta já seja uma resposta a uma outra pergunta, isso se veicula com a idéia da busca do conhecimento, a vontade de conhecer. O ato de questionar, em si, aliado à técnica da maiêutica e ao uso da ironia, se fez presente nesse emergir da Filosofia ateniense.






quinta-feira, 4 de junho de 2009

Sobre o ceticismo contemporâneo

A antropologia filosófica tem um quê de metafísica dentro do que se defina por antropológico; investiga a estrutura essencial do homem. O homem, por sua vez, conduz a especulação filosófica, já que todos os juizos nossos são necessariamente juizos humanos, provenientes de reflexões necessariamente humanas.

O modo de existir e de ser torna o homem acessível às realidades investigadas pela filosofia, e a transcendem no modo em que tudo parte de uma perspectiva humana. O ego, nesse caso, torna-se fundamental para essa concepção, já que ninguém pode sentir fora de si ou saber com exatidão como é a dor ou a impressão que outrem teve sobre uma mesma ação ou objeto. De fato, quando nos damos conta da igual limitação da própria linguagem, que é mera tradução dos nossos próprios pensamentos, nos pegamos numa situação de extrema limitação do entendimento. Na própria Filosofia da Arte temos que um mesmo objeto de apreciação tem diversas interpretações num mesmo homem – desde que em momentos distintos – o que diremos, então, de uma sensação externa a nós? Segundo Miguel Eugênio Almeida, da UEMS, “a concepção da língua como produto histórico-social implica, antes de tudo, a dimensão do homem como ser de linguagem e como ser social, no contexto da Antropologia Filosófica. O homem revela-se e revela a realidade do mundo perante a linguagem”. Ou seja, Ao relacionarmos a História da Linguagem com a Filosofia, estamos buscando o princípio do Ser; na Antropologia Filosófica, indagamos a posição do homem no mundo. Assim, a linguagem compreende a relação do homem com todas as coisas. A linguagem envolve o Ser em toda a sua plenitude, como diria Heidegger: a linguagem é a casa do ser. Isto é, o Ser está na linguagem e vice-versa. Tudo que o homem diz, faz ou pensa está presente à linguagem. É pertinente a relação da mesma (linguagem) com toda produção cultural humana. Trabalhamos mitos de entendimento a todo o tempo, pois não temos condições alguma de termos idéia de como as coisas são de fato – a coisa em si. Sentimos a necessidade de confiar na “ciência”, mas ela própria baseia-se na observação de causas e efeitos, a partir de estatísticas. Eis o método científico, que é o primeiro a ser incapaz de proporcionar respostas sobre a coisa em si. O próprio fato de confiarmos tanto na ciência parte de um mito, já que o agente receptor da informação não participa do método científico empregado para a aquisição dos seus resultados.

O que dizer, também, sobre o autoconhecimento? A frase do oráculo de Delphos, atribuída comumente a Sócrates, por tê-la proferido, permanece até hoje perturbadora. Como poderemos estar tão preocupados com o conhecimento factual do mundo e das coisas ao nosso redor se não conhecemos a nós mesmos? E mais, se o próprio autoconhecimento é algo distante, qual o conhecimento real que temos do mundo? Isso também nos leva à clássica problemática da cognição a partir dos sentidos – empirismo. Como poderíamos confiar nos sentidos para a aquisição do conhecimento, se os próprios podem ser os primeiros a nos enganar? Com a nossa tecnologia atual, de fato, sabemos que há diversas informações ao nosso redor que simplesmente não são captadas por nossos órgãos, como infravermelho, bluetooth, lasers, sons em determinados graus de agudo, sinais de rádio, entre outros. E, se antes o antropocentrismo nos mostrou que o homem é a medida de todas as coisas, hoje temos uma tendência biocêntrica, com o respeito pela vida como um todo. Cada vez mais nos vemos isolados num universo que parece extenso demais para nossa diminuta consciência. Dados progressivos mostram que a cada ano que passa, aumenta a quantidade de pessoas céticas. Sem religião. Nessas estatísticas, estão inclusos teístas, mas também o estão os agnósticos e os ateus. O homem do século XXI está descrente. Na vasta imensidão em que ele se encontra, busca sentido para o mundo. E para a própria vida. Sua própria existência foi questionada. O relativismo que tanto irritava Descartes foi vencido a princípio com a afirmação do pensamento. Com o trunfo do “penso, logo existo”, essa seria a primeira verdade absoluta: nossa existência! Contudo, filósofos posteriores mostraram que a coisa não era bem assim. Voltamos à estaca zero. Nossa nova tendência está agora vinculada à “invenção” contemporânea da perspectiva do ‘si mesmo’ – soi même – que na modernidade e nos tempos anteriores à mesma era ausente.

No século passado, a humanidade promoveu duas grandes guerras, instaurou diferentes sistemas econômicos, tentou melhorar o modo de produção capitalista... mas esbarrou na própria limitação do ego. Estivemos, por fim, a beira de uma guerra nuclear durante a guerra fria e hoje tenta-se promover o consenso de que as guerras são abomináveis, em detrimento da diplomacia racional. Contudo, a tecnologia que tanto reverbera nossa capacidade inventiva, ainda não foi capaz de dar um sentido absoluto à existência. Se “a técnica”, realmente, “desumanizou o homem”, é para nós agora imperativo que reconheçamos nossas limitações, juntar nossos cacos e seguir em frente. Continuamos na estaca zero, inclusive nos perguntando o que é que de fato somos, como Sócrates, há dois milênios.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O tabu do suicídio

Inicio este blog falando sobre o suicídio, que é um tema que é tabu em todas as sociedades. Ainda que em casos específicos, como o dos estóicos, ou no caso do suicídio pela honra da família, como acontece desde os tempos primórdios da cultura japonesa, é um tema que causa espanto e controvérsias.


Os estóicos respeitavam o ato do suicídio. Era até recomendado para quando se pudesse decidir que a vida não tinha mais o porquê de ser vivida. Os estóicos suportavam as adversidades com calma e dignidade, mas também acreditavam que as circunstâncias da vida de um homem podia se degradar a tal ponto (seja devido a uma tragédia pessoal, à ruína e a subseqüente miséria, seja devido a uma doença dolorosa e terminal), que um suicídio indolor se tornava a coisa mais racional a fazer. Se, para Platão, o suicídio é uma injustiça praticada contra si mesmo, para Sêneca, “a vida não vale a pena ser comprada a qualquer preço. O essencial não é viver, mas viver bem”. O próprio Sêneca cometeria suicídio mais tarde. Aristóteles argumenta que ninguém pode ser agente e paciente de uma injustiça, portanto, a injustiça do suicida é para com a própria sociedade. Para Epicuro, o sábio deve ser alegre mesmo nos sofrimentos cruéis, o que para alguns reflete as próprias limitações que acometiam sua saúde. Um discípulo epicurista, Hegésias, certa vez questionou se “se a felicidade do homem consiste na soma de seus prazeres, e estes forem inferiores à soma de males que a vida lhe oferece, como não justificar o suicídio?”.


Zenão de Atenas é, de certa maneira, controverso na sua abordagem da fatalidade suicida, porém admite que em certos casos, o suicídio é justificável, já que, para ele, o homem deve viver conforme a Natureza (Logos). Portanto, deve deixar a Natureza seguir o seu curso. Mas, em certos casos, quando ato de virtude, pode o sábio escolher a hora que o Logos determinou... (perscrutando os seus desígnios). Sua linguagem há um misto de mitologia, mas exacerba bem a possibilidade das exceções em nome da honra.


Se na Antigüidade, as divergências a respeito do suicídio eram claras, na modernidade há uma tendência de ausentar de sentido o ato suicida. Descartes afirma que é claro que a vida oferece mais bens do que males, já que a vida é o suporte básico de todos os bens, sem a qual nenhum bem existe. Contudo, todos os bens são incertos, exceto a própria vida. Portanto, suicidar-se é fazer mau-uso do livre arbítrio. Spinoza, apesar de diferentes argumentos em relação à René Descartes, conclui no mesmo caminho no que tange ao seu fim, quando verbera que o desejo é a essência mesma do homem, isto é, o esforço pelo qual o homem tende a perseverar no seu ser. O princípio da virtude é o esforço para conservar o próprio ser. O suicídio não é um ato de virtude pois que visa a destruição do que foi a essência mesma do homem, seu poder e sua tendência fundamental. Portanto, para Spinoza, não pode haver virtude no ato de tirar a própria vida, noutras palavras, o ato suicida é um ato de covardia, já que significa a desistência de permanecer vivo. Voltaire comenta sobre os suicidas de forma lacônica – e até mesmo engraçada – quando resume que os suicidas são, simplesmente, “...uns ociosos ou gente que não sabe mais o que fazer”.


Rousseau alega que ninguém é completamente inútil, já que qualquer um dos homens seria útil à humanidade pelo simples fato de existir. Então, nesse caso, o suicida estaria cometendo um roubo contra o gênero humano, já que sempre fica uma boa ação por fazer. E tal ação, obviamente, teria sido feita pelo suicida – e só por ele. Kant leva um quê de complexidade à questão, quando afirma que “o suicídio não pode ser erigido em norma universal (em padrão para a espécie humana), é infração à Lei Universal, porque destrói o próprio sujeito da moralidade; o suicídio é usado como um fim em si mesmo, arbitrariamente, sendo um atentado à liberdade; é a própria negação do querer-viver da Natureza (o oposto da sintropia da vida). Essa visão kantiana do suicídio compartilha com Sartre na questão da falta de respeito ao livre arbítrio (“mau uso” do mesmo denota julgamento de valor). Dostoievski analisa a questão sem omitir uma reflexão, apenas afirma que aquele que se mata se coloca no lugar do próprio Deus.


Descendo os degraus da academia à sociedade comum, com pessoas simples, que simplesmente se horrorizam ao saber que aquela pessoa “tão promissora” cometeu suicídio, voltamos à realidade crua que ronda a vida, que é a morte. Por mais que se omita ou não o assunto do suicídio, o fato é que o homem sempre continuará senhor da sua vida – ao menos da decisão de continuar vivendo.