terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Peter Singer, aborto e eutanásia



Há uma harmonia nas concepções de Peter Singer a partir da universalizabilidade e da consideração de interesses, onde tudo se encaixa quando aceitamos as máximas que fundamentam os seus preceitos. Tal como o estreitismo entre a questão do aborto, no autor, com a questão da eutanásia.

A eutanásia tem sido freqüentemente debatida hoje por conta, em grande parte, das novas tecnologias e que, através de seus aparatos, consegue estender a vida em estado miserável e/ou vegetativo até as últimas conseqüências, e o objetivo disso torna-se questionável nos casos em que manter uma vida em estado miserável só virá a trazer sofrimento ao doente e à família, e no estado vegetativo, será somente a família o alvo do padecimento, já que o próprio paciente já não tem qualquer capacidade de entender o que se passa, de sentir, capacidade de discernimento, enfim, o paciente encontra-se numa debilidade tão grande que nem mesmo mais sofre ou tem quaisquer tipos de prazeres.

A “eutanásia”, nos dicionários, é descrita como uma morte serena, sem sofrimentos. Há uma ligação íntima da eutanásia, neste sentido, e o suicídio desde os tempos primórdios da História da Filosofia. Ambos os casos estão relacionados com a autonomia daquele agente que sofre: só ele será capaz de decidir para si entre a vida e a morte – e nesse caso encaixar-se-ia com o conceito de “eutanásia voluntária” em Singer.

A concepção de eutanásia, que geralmente era tolerada ou incentivada pelos antigos, por diversos motivos como alívio da dor e até mesmo em nome da honra, vai mudando com o tempo e coincide com o avanço do cristianismo no Ocidente e a questão da sacralização da vida volta a ganhar destaque nesse contexto. Em geral, não há sentido simplesmente em manter uma pessoa cuja morte é certa e a dor agonizante, viva. O paradigma que estamos vivendo em relação ao direito à vida remonta a questão cristã do caráter sagrado da vida humana, donde uma vida, que é dada por Deus, deverá ser mantida custe o que custar, ou seja, até suas últimas conseqüências. Acontece que os novos métodos de preservação da vida em determinados casos terminais faz necessário o questionamento destes dogmas religiosos, em prol do alívio do sofrimento daqueles que, amiúde, nem sequer têm o direito de escolher entre a dor e a morte. As novas tecnologias nos apresentam novos questionamentos a respeito de ética e moralidade – e é aí que se encaixa a Ética Prática com todo o seu arsenal filosófico que privilegia o pragmatismo da aplicabilidade do pensar filosófico e do pensamento lógico em prol da vida, contudo não de forma cega e a todo custo, mas “vida” até o momento em que haja sentido para que se denomine enquanto tal.

Segundo a revista Superinteressante edição 221, de 16 de dezembro de 2005, cuja capa trata de questões que envolvem a eutanásia, no Brasil a lei sobre esta questão se manifesta e encara como homicídio a eutanásia, o ato deliberado de apressar o fim de quem está morrendo. Nesse jogo entre o alívio da dor e a “tortura”, a ortotanásia, “a morte no momento certo”, é considerada omissão de socorro e tem pena de um a seis meses de prisão. Apesar disso, a ortotanásia é freqüentemente praticada. O médico retira os aparelhos e deixa o doente seguir o seu curso de morte. Trata-se do modo mais comum de morrer nas UTI’s pediátricas do Brasil. Dois estudos publicados em março de 2005 pela Revista Brasileira de Pediatria, sobre 167 casos ocorridos em 2002 nas principais UTI’s pediátricas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, mostram que pelo menos 36% das crianças morreram após a “limitação do suporte de vida”, expressão que reúne decisões como não entubar, não reanimar e até tirar o suporte vital.

O estudo observou que pelo menos 30% desses casos são omitidos ou reportados contraditoriamente nos hospitais. Mas há quem veja na própria legislação fundamentos para apressar a morte quando o tratamento só prolonga o sofrimento. O 1º artigo da Constituição assegura a dignidade da pessoa humana, e esse direito deveria ser estendido até os últimos momentos – é o que alega, por exemplo, Lívia Pithan, professora de Direito da USP.

Apesar da herança cristã de sacralização da vida humana, que leva a vida mesmo em sofrimento até as últimas conseqüências, o prolongamento da dor já foi condenado pela Igreja Católica, na pessoa do Papa Pio XII, que afirmou que “quando houver desesperança, os médicos não devem se valer de instrumentos extraordinários para prolongar indefinidamente a vida”.

Para Peter Singer, “quando abandonamos essas doutrinas sobre o caráter sagrado da vida humana, que caem por terra assim que são questionados, o que se torna horrível, em alguns casos, é a recusa em admitir que é preciso matar” (Ética Prática, pág. 185). Hoje em dia é que o termo “eutanásia” é utilizado para referir-se à morte daqueles que estão com doenças incuráveis e sofrem de angústia e dores insuportáveis. É uma ação praticada em benefício dos doentes e tem por finalidade poupar-lhes a continuidade da dor e do sofrimento. Singer inclui, porém, pessoas sem capacidade de decisão, onde a medicina aponta para uma vida de dor e privações caso estendida. Há três tipos de eutanásia. Ei-los:

* Eutanásia voluntária;

* Eutanásia involuntária;

* Eutanásia não-voluntária.

A eutanásia voluntária é quando o próprio paciente em questão tem ainda condições de pedir pela própria morte. A maior parte dos grupos que brigam por mudanças legais em relação à eutanásia referem-se à esse método.

Na eutanásia involuntária, a pessoa morta tem condições de consentir com a própria morte, mas não o faz, tanto por que não lhe perguntaram se quer morrer quanto por que lhe perguntaram, e ela quer continuar vivendo. Há uma diferença entre matar alguém que prefere continuar vivo e matar alguém que não consentiu ser morto, mas que, se perguntado, teria dado o seu consentimento.

Matar alguém que não consentiu ser morto só pode ser apropriadamente visto como eutanásia quando o motivo da morte é o desejo de impedir um sofrimento intolerável da pessoa morta. Os casos autênticos de eutanásia involuntária são os menos comuns, todavia.

Essas definições abrem espaço para um terceiro tipo de eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte, a eutanásia não seria nem voluntária nem involuntária, mas não-voluntária. Dentre os incapazes de dar o seu consentimento estariam incluídos os bebês que sofrem de doenças incuráveis ou com graves deficiências e as pessoas que, por motivo de acidente, doença ou velhice, já perderam para sempre a capacidade de compreender o problema em questão, sem que tenham previamente solicitado ou recusado a eutanásia nessas circunstâncias.

Superficialmente, o direito de morrer se basearia no princípio de autonomia, onde toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida. A revista “Ciência & Vida – Filosofia”, nº 38, cuja capa estampa “Eutanásia” como manchete, cita que “para Nietzsche, não é desmedido dizer que a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor”. A mesma revista ainda cita que, “no Brasil, a eutanásia é considerada uma forma de homicídio. A lei não faz qualquer referência a ela, mas a prática é julgada de acordo com o artigo 121 do Código Penal, que pune crimes de homicídio com penas de 6 a 20 anos de reclusão. Há projetos tramitando no Congresso para mudar tal situação. Um deles faz parte da própria reforma do Código Penal. Parte do anteprojeto que está sendo elaborado para dar lugar à legislação penal atual prevê a alteração de dispositivos do Código Penal, legislando sobre a eutanásia em dois itens do artigo 121. No parágrafo 3º, buscando reduzir a pena de reclusão, caso o autor do crime tenha agido por compaixão e a pedido da vítima. No 4º, tentando descriminalizar o ato de deixar de manter a vida de alguém por meios artificiais, caso a morte tenha sido atestada como iminente e inevitável, desde que solicitado pelo paciente ou parentes próximos”.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Karl Marx e o século XXI




É imperativo que percebamos Marx como homem do seu tempo, o que significa enxergá-lo antenado às urgências de sua época. A história não engessa jamais, e a filosofia precisa caminhar em igual sintonia para que possamos extrair o máximo de suas experiências sem deixarmos de lado as peculiaridades de nosso tempo.

Marx, visto como um teórico do capitalismo, é talvez a figura mais importante na história recente da Filosofia Política, engendrando-se pela Economia e Sociologia. Seus estudos influenciaram diretamente a nossa história como Filosofia pragmática, voltada para os resultados de suas especulações, além de meramente devanear sobre a realidade das coisas. Marx apontava a necessidade de transformarmos a história, muito além de descobrir e decifrar os mistérios das questões fundamentais da vida. Talvez, em nossa história recente, nenhum outro homem tenha tanto influenciado nossa geopolítica de forma tão intensa quanto o nosso pensador, e o estudo das teorias que influenciaram fortemente nossa história se torna mais que uma opção – torna-se necessário para entender o mundo no qual vivemos hoje.

Apesar de que todos são frutos de seu próprio tempo e para ele estão voltadas suas atenções, o pensamento marxiano é dotado de uma mobilidade para além de seu tempo, o que torna a sua obra completamente viva mesmo depois da derrocada do muro de Berlim. O capitalismo continua com força suficiente para nos valermos das proposições de Marx e, ainda que modificado e enfraquecido, continua alvo de nossa crítica, pois uma vez desenvolvido o marxismo, tanto ele quanto seu objeto de estudo – o capitalismo – tornaram-se interdependentes.

O capitalismo mudou dos tempos de Marx para cá. Ganhou aspectos socialistas de alguma forma, como os movimentos sindicais, e noutros casos tomou certas conquistas como suas – como a democracia e a idéia moderna de liberdade; não filosoficamente, de difícil interpretação e impossível definição, mas liberdade no sentido mais lacônico – aquela “liberdade” que joga imediatamente uma idéia na mente, mas que ninguém define com clareza se perguntado. Elementos do que se compreende hoje por democracia, erroneamente atribuídos ao liberalismo, quando na verdade foram pegas “emprestadas” do socialismo, que teve na emancipação do homem as suas prerrogativas básicas, tal emancipação vista como um dos estágios finais de seu desenvolvimento.

É fundamental separarmos o marxismo do “comunismo” que foi aplicado na União Soviética, por mais estapafúrdio ou estranho que isso possa parecer. Isso por que os soviéticos se apoderaram de elementos marxistas para o desenvolvimento de seu Estado, todavia, apoderaram-se da alcunha de “socialistas” e/ou “marxistas” de maneira indevida, já que o stalinismo, por exemplo, se aproxima mais da tirania do que do marxismo. O que aconteceu na União Soviética é vista pelos estudiosos de Marx como algo que não deva ser levado em consideração sob o aspecto científico, enquanto experiência marxista – o que supõe obviamente que o marxismo ainda é uma experiência a ser contemplada pela primeira vez.

Vista sob a ótica filosófica heraclitiana da mobilidade, ficamos numa enrascada tremenda: ao mesmo tempo em que precisamos adequar o marxismo às novas realidades, precisamos não fugir de preceitos básicos para que continue sendo “marxismo”, ou melhor, “comunismo”, e não outra coisa qualquer que se apodere de suas máximas e de suas alcunhas por mera vantagem propagandística, e talvez seja difícil tentar adequar o marxismo à atualidade sem fugir do que o caracteriza sem parecer contraditório.

Marx vê a Revolução Socialista como algo do qual o capitalismo não poderá escapar por conta de sua própria natureza de exploração: surgirá o momento em que a Revolução tornar-se-á algo inevitável. É como se o pai da Revolução fosse o próprio capitalismo, e não devemos – nem podemos – tirar o seu “mérito”. Os meios de produção capitalistas, com o tempo, tendem a tornar-se frágeis e, nos nossos dias, podemos perceber que muito do que Marx profetizava se concretizou de alguma forma, o que explicita que Marx era mais que um mero “fututologista”, mas um estudioso das engrenagens de seu tempo e que teve a capacidade de olhar para além dele a partir do próprio, com todas as limitações inerentes à condição humana e às condições de seu tempo.

A revolução, para Marx, tornar-se-á inevitável por ser o desfecho provável do capitalismo, contudo dependerá de diversos fatores institucionais e sociais; dependerá de todo um amadurecimento do próprio capitalismo e de suas instituições, bem como a conscientização do proletariado. Nem Marx nem Engels preocuparam-se em saber detalhes de como seria essa revolução, ambos estavam mais preocupados em vivenciá-la.