sábado, 29 de dezembro de 2012

Confissão de um vício

Acredito que nunca escrevi em primeira pessoa neste blog. Não que eu me lembre. Mas agora, não vou escrever algo relacionado à Filosofia ou postar uma poesia. Vou confessar um vício que tenho desde criança. Eu me permito uma dose diária de alienação, quase uma morfina. Todos os dias, é uma tradição pessoal. Imagino um mundo perfeito, em que todas as pessoas são felizes e têm suas reais necessidades supridas; que todas as pessoas são amorosas, honestas e solidárias; imagino um mundo em que nós não precisamos desconfiar das pessoas e que ninguém queira tirar proveito de ninguém; imagino um mundo de pessoas que, ainda que não consigam ser simpáticas, sejam educadas e cordiais. Às vezes esse mundo sequer tem fronteiras, e não há sequer necessidade de afirmar-se a igualdade, já que para todos isso é uma condição moral básica. Desnecessário dizer que inexiste até mesmo a palavra "hierarquia" ou "autoridade". Imagino um mundo maravilhoso em que as pessoas não são ridicularizadas por sonhar e lutar por aquilo em que acreditam; e ainda que cada um saiba que é responsável por aquilo que faz e que suas conquistas são méritos próprios e não de divindades imaginárias. É claro que em algum grau eu também me moldo nessa fantasia. E também é imperativo que após descer do pedestal dos sonhos, eu deva me deparar com a realidade para que eu tente ser mais um agente transformador de alguma maneira. Mas esse meu mundo imaginário me ajuda a seguir em frente e me permite não sufocar em momentos de maiores angústias frente à desesperança na maneira pela qual o mundo se apresenta em sua versão mais crua para mim.

domingo, 11 de novembro de 2012

Paralelas

A cada lua
Em carne tua
De suave amônia
Que gera insônia...

Em cada noite
Que gera o açoite
Desprezo da ausência
Lacônica consciência...

A dor é crua
Na minh'alma nua
Lembrança errônea
Qu'é prata e sonha...

sábado, 10 de novembro de 2012

A religião pode ser boa?

Nem sempre uma religião é algo maléfico, destruidor e insano; também nem todo religioso é um completo alienado, como defendem alguns descrentes. Na ânsia de demonstrar um ponto de vista, pode-se perder o bom senso e isso soa extremamente arrogante.

No meu ponto de vista, a religião não se torna má, por exemplo, quando não serve de norte para as escolhas da pessoa, quando a religião não faz com que a pessoa se contente em não entender o mundo e ainda acredite que isso seja uma virtude, quando a religião não é utilizada para praticar atos antiéticos na certeza de que isso será 'perdoado aos olhos de deus', quando a religião não sirva como imposição às crianças, que ainda não tiveram o direito de escolher o que vão seguir na vida, quando a religião não é utilizada para oprimir minorias, quando a religião da pessoa em questão não é utilizada para doutrinar aqueles que têm pontos de vista diferentes, enfim, quando a religião não tem influência direta nas decisões da pessoa, não percebo mal algum. A religião só se torna má quando a pessoa passa a agir baseando-se em suas crenças e é convencida de que os valores se invertem quando se tem fé, não sendo necessário sentido ou evidências para que se tome algo como verdade e ainda considerar que tal situação seja algo virtuoso...

A religião também pode se tornar má quando, ao invés de doarmos os nossos excessos às instituições sérias de caridade, como a Oxfam, doamos para um pastor ou padre que usa a maior parte dos rendimentos para reinvestir na própria igreja, que muitas vezes é confundida com um negócio empresarial - com a vantagem de não pagar impostos. Em 'A vida que você pode salvar', Peter Singer, que é ateu, mostra através do princípio da igual consideração de interesses que nós temos um dever moral de colaborar com os mais necessitados, sendo a maneira mais eficiente de fazê-lo pesquisando quais são as instituições de caridade sérias e eficientes, para que o dinheiro doado seja bem empregado. Infelizmente, os religiosos em geral são convencidos de que melhorarão o mundo quando investem na própria igreja, que 'trará mais almas' para Jesus, Shiva, Buda ou Alá, ao invés de pensar em contribuir de fato e diretamente com aqueles que podem estar a milhares de quilômetros de distância e cujas dores, sonhos e anseios são tão importantes quanto qualquer outro. A doação, quando se aceita o princípio da igual consideração de interesses, se torna algo imperativo categórico e isso independe de crença em almas ou deuses.

Vejo que o pior legado da religião são os códigos de conduta, um guia moral para a vida. Não há Ética ou Moral nas assertivas religiosas, já que a Ética é algo em contínua construção pelo exercício do princípio da razão; nas religiões, ao contrário, há um guia pronto e acabado. Os mitos, como um todo, tiveram sua utilidade na época em que foram criados, mas tais conceitos vistos num mundo contemporâneo em que desenvolvemos Filosofia e Ética, são por demais primitivos. A Ética substituiu o que seria um 'ditador universal', como diria Christopher Hitchens, que poderia punir aqueles que não agissem da maneira como ele disse através de algum homem iluminado. 

Os códigos primitivos das mitologias seguiam os costumes de suas épocas e podem ter sido úteis naquele tempo, mas hoje em dia soa muitas vezes como algo absurdo e fora da realidade. Estamos na Era da Razão e é importante concebermos que na evolução do pensamento humano, a Ética cobra seu espaço.

 Bertrand Russell, filósofo vencedor do Prêmio Nobel de 1950

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Como fabricar seu próprio remédio homeopático

Artigo maravilhoso e bem-humorado escrito no "Estadinho" por José Colucci Jr., do "Estado de São Paulo" voltado para as crianças (e para adultos, dependendo do caso):

Amiguinho, na matéria “O que é a homeopatia”, publicada na seção Ciência do caderno Estadinho (O Estado de S.Paulo, 24/11/01), você aprendeu como a homeopatia funciona e como são feitos os remédios homeopáticos. Com este artigo aqui no Observatorinho você irá, brincando, ampliar os conhecimentos adquiridos naquela leitura. Vamos brincar de homeopata. A diferença é que, ao contrário do Estadinho, eu acho que você já pode exercitar o pensamento crítico. Pensar é coisa que se aprende em criança, como se aprende a nadar e andar de bicicleta. Vamos à brincadeira.
O Remédio de Mentirinha
Quando pequeno eu gostava muito de brincar de médico com as minhas primas. Meu tio, o pai delas, ficava bravo quando nos pegava brincando, e acabava logo com a brincadeira – talvez por medo que alguém se machucasse. Não se preocupe. Brincar de homeopata é seguro, pois, como você verá, na homeopatia não há injeções.
Primeiro é preciso preparar o remédio de mentirinha. Arranje uma porção de frascos de plástico, com tampa, e uma colher. Não use vidro. Vidro pode quebrar e machucar a sua mão. Os frascos têm de estar bem limpos. Coloque cem colheres de água no primeiro frasco e acrescente uma colher do remédio. Que remédio? Ora, que pergunta! Você aprendeu no Estadinho que “o que pode fazer mal também pode curar”. Assim, pegue uma substância que cause em pessoas sadias os mesmos sintomas da doença a ser tratada. Por exemplo, para curar doenças que causem vômito, use uma substância que cause vômito em pessoas sadias, como, por exemplo, creolina – aquele desinfetante fedido que a sua mãe usa na casinha do cachorro. Daqui em diante vamos chamar essa substância de princípio ativo. Não use veneno para matar rato como princípio ativo. Não é que tenha perigo; nas diluições que usaremos nada tem perigo. É que você pode errar na receita e matar algum amiguinho.
Pois bem, como dizíamos, coloque cem colheres de água no primeiro frasco e junte uma colher de princípio ativo. Tampe e chacoalhe bem. Não se esqueça dessa parte, pois os homeopatas atribuem a ela uma grande importância. É a chamada sucussão, que faz as moléculas da água absorverem a “essência” do princípio ativo em sua memória. Se você não sabia que a água tem memória, ficou sabendo agora. Tem, e é muito boa; tanto que só se lembra do que quer. A melhor maneira de fazer a sucussão, segundo os homeopatas, é golpear o frasco cem vezes contra um objeto macio. Eles usam uma tira de couro, nós podemos usar um travesseiro. Essa é a primeira diluição, chamada C1. Vamos às próximas diluições.
Junte uma colher da solução diluída do primeiro frasco, C1, a cem colheres de água no segundo frasco. Agite o segundo frasco cem vezes. Essa é a diluição C2. Coloque cem colheres de água no terceiro frasco, junte uma colher da diluição C2 e agite cem vezes. Essa é a diluição C3. Prossiga assim, diluindo cada vez mais. Quando você chegar ao sexto frasco, C6, a solução estará tão diluída quanto a água de uma piscina olímpica onde pingou-se uma gota de Creolina. Nessa concentração, a piscina tem mais moléculas do xixi do seu irmãozinho do que de creolina. Não pare por aí. Como futuro homeopata você tem de aprender que “quanto mais diluído, mais cura”. Aumentando a diluição, aumentamos a potência do remédio. Vejo pela sua cara que você não acredita. Até parece que você não lê o Estadinho. Se continuar a pensar racionalmente você nunca será um bom homeopata.
Evite Respirar
Continue diluindo. Evite respirar, pois daqui para a frente a sua respiração introduz no frasco mais moléculas ativas do que as já presentes na solução. Pare quando chegar ao décimo segundo frasco. Olhe para a água. Você vê alguma coisa diferente? Não? Experimente umas gotas. Sente algum gosto estranho? Claro que não, pois na diluição C12 não existe uma só molécula do princípio ativo na solução. Essa diluição equivale aproximadamente a uma gota de princípio ativo dissolvida na água de todos os oceanos da Terra. Se você prosseguir diluindo, como fazem os homeopatas, estará misturando água com água.
Mas aí vem o chato do Juquinha, aquele seu amigo que gosta de ciência. Se ele duvidar da eficácia do nosso remédio, responda à altura. Mostre o quanto ele é limitado em sua visão convencional dos conceitos de química e biologia. Explique que o processo de sucussão “promove o armazenamento de energia da região infravermelha do espectro nas ligações moleculares do solvente” e que essa energia é “liberada pelo contato do solvente com a água dos organismos vivos”. Eu sei que nem você nem eu entendemos essa explicação. O nosso consolo é que o homeopata que a formulou também não, do contrário jamais teria dito tamanha asneira.
Deixe o Juquinha de lado. Esses escravos da lógica não tem futuro. Quando crescer, aposto que ele será um desses médicos que só aceitam a medicina baseada em evidências. Certamente passará a vida trabalhando num hospital do SUS.
O remédio que acabamos de preparar é muito parecido com o remédio homeopático chamado Kreosotum. Arranje um rótulo para o frasco da última diluição e escreva nele: Kreolinum C12, pois a homeopatia usa nomes em latim. O remédio chamado Natrum Muriaticum, por exemplo, é cloreto de sódio, ou sal de cozinha. Aposto que você, com a sua cabecinha de criança, nunca imaginou que, bem diluído, o mesmo sal que a sua mãe põe nas batatas pode ser usado para curar doenças como úlcera, anemia, febre, tosse comprida e varizes. Não faça essa cara de cético, menino. Desse jeito você vai virar colega do Juquinha no corpo clínico de algum hospital público.
A Consulta Homeopática
Agora que você já tem o remédio de mentirinha, é preciso arranjar um livro de mentirinha. Pegue um bem antigo, de preferência com as páginas já amareladas. Escreva na capa, em letras caprichadas, Materia Medica. A primeira Materia Medica homeopática foi publicada por Samuel Hahnemann, o criador da doutrina, há exatamente cento e oitenta anos. Na época de Hahnemann, os tratamentos médicos convencionais incluíam drogas perigosíssimas, lavagens intestinais, sangrias e aplicação de sanguessugas. Eu não sei você, mas se eu vivesse naquela época preferiria me tratar com o Dr. Hahnemann. Afinal, a maioria das doenças acaba se curando sem tratamento algum. Tenho calafrios só de pensar em uma porção de vermes grudados nas minhas costas, a me chupar o sangue.
Felizmente, a medicina mudou bastante desde 1821. Eu nunca fui tratado por médico que usasse sanguessugas, e olha que eu sou bem mais velho do que você. Os homeopatas, porém, não mudaram muito. Para eles, os princípios de Hahnemann continuam valendo. A Materia Medica que tenho em mãos – escrita por Clarke em 1900, mas ainda bastante usada – diz que o próprio nome latino materia é inapropriado, pois o homeopata lida com “forças de ordem muito mais alta do que as conhecidas da velha física”. Não sei por quê, mas a frase me faz lembrar da minha tia Suzi, cuja casa cheira a incenso de patchuli.
O remédio que acabamos de preparar, como eu disse, é parecido com o Kreosotum. Vamos ver lá na Materia Medica para quê serve. O Kreosotum é indicado para dentes cariados, doenças das gengivas, vômitos, certas doenças do estômago e feridas que sangrem muito. Como o remédio é de mentirinha, receite-o para alguém de mentirinha, como uma boneca ou um ursinho de pelúcia. Não!, melhor, receite-o para a sua avó, que está sempre imaginando doenças. A homeopatia é comprovadamente eficaz na cura da hipocondria.
Boca Fechada
Percebo pela sua cara que você está começando a desconfiar que uma gota de remédio dissolvida em várias vezes o volume de água do Rio Amazonas não pode ter efeito fisiológico. Admiro o seu raciocínio, bem mais arguto do que o de muitos adultos, mas fique de boca fechada. Se você quer ser médico, tem que aprender a não falar mal dos colegas de profissão. É que a homeopatia, como você aprendeu no Estadinho, é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina. A grande maioria dos médicos não acredita nela, mas evita falar mal dos homeopatas para não ferir a ética profissional.
Esse negócio de não poder falar mal dos colegas de profissão é realmente estranho. Coloca-se com isso o interesse de uma classe acima do interesse público. Dou um exemplo. Quando eu estava terminando este artigo, a Revista IstoÉ de 27/11/2001, publicou a matéria de título “Seleção Esotérica”. A matéria explica como a numerologia e a astrologia estão sendo usadas na seleção de candidatos a emprego. Isto é, tem gente competente sendo discriminada porque foi batizada com o número errado de letras, ou porque o obstetra atrasou a cesariana. Segundo a IstoÉ, várias empresas se utilizam de técnicas esotéricas na seleção de pessoal e administração. Entre os especialistas das “técnicas alternativas” de recursos humanos citados na reportagem estão dois engenheiros e uma arquiteta. Eu gostaria muito de dizer o que acho desses picaretas, mas não posso. É a ética, entende?
Vamos parar de brincar, que a sua mãe está chamando. Na semana que vem inventaremos uma brincadeira nova. Estou pensando em algo assim como o Manual do Pequeno Numerólogo, ou O Guia da Criança Astróloga. Por enquanto, vá providenciando a parte mais importante: os clientes. Arranje uma porção de crianças bobas, mas bem bobas mesmo. Peça para trazerem o dinheiro da mesada. Um abraço do tio Zezé.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Ciência, Metafísica e Religião

Não podemos concluir absolutamente nada sem uma evidência, seja no empirismo ou no racionalismo. Algo que parta de uma mera necessidade de conforto, por exemplo, jamais pode servir como premissa de alguma conclusão válida. O fato é que não há quaisquer indícios pra imaginar uma entidade criadora, especialmente nos nossos dias, cuja prioridade do conhecimento é o entendimento dos fenômenos através da empiria da metodologia científica. A metafísica foi abandonada justamente por não ser capaz de desenvolver conhecimentos palpáveis, que possam ser evidenciados. Não há na contemporaneidade mais qualquer sentido em continuar tentando interpretar o mundo metafisicamente.

Não há provas contra a existência de tudo que podemos imaginar: se eu jurar que existem unicórnios no sub-solo de Marte, alguém jamais vai conseguir provar que eles não existem. Contudo, ninguém em sã consciência pode achar razoável que isso seja real. A única coisa que faz com que uma entidade divina ganhe privilégio em relação a tudo que possamos imaginar, como por exemplo o monstro do espaguete voador, unicórnio rosa invisível, etc., é justamente a necessidade que tinha a humanidade de conhecer e compreender o mundo que se explicitou nos primórdios através das religiões e permanece até hoje, com os mitos atuais; bem como a necessidade de conforto pessoal e de algo que alivie a angústia a priori de se sentir finito e só no mundo. Uma vez, contudo, que já temos condições técnicas de realmente compreender o mundo através do conhecimento verificável, através de evidências que nos permitem tirar conclusões confiáveis, ao contrário dos mitos, não há mais sentido em tentar compreender o mundo metafisicamente - isso já é inclusive um ponto pacífico na Filosofia Contemporânea. A principal diferença entre o conhecimento religioso e o científico é justamente a origem dos mesmos: o científico é empírico, verificável e revisionista e daí vem a sua credibilidade. Assim como o conhecimento filosófico pode ser uma chave para uma compreensão efetiva da coisa-em-si, pois a ciência não abrange suficientemente temas como Ética, Estética e a própria Lógica, que flutua entre a Filosofia e a Ciência. Portanto, os conhecimentos com algum grau de credibilidade e revisionistas que nós temos são justamente o científico e o filosófico, desde que não esteja contaminado pela Metafísica pura, que tem sua importância histórica mas foi substituída pelo conhecimento verificável.
Epistemologicamente, de que maneira tenho condições de utilizar-me da dedução, ainda que do ponto de vista da lógica aristotélica, para extrair conclusões a respeito daquilo que vejo no mundo? Compartilho da posição de Shopenhauer, que ao meu ver é até uma conseqüência das meditações cartesianas. Para "Tio Shopa", o mundo é representação do sujeito. A terra e o sol são representações do sujeito. O mundo circundante somente existe (da forma como o concebo) como representação. Tudo o existe para o conhecimento, isto é, o mundo inteiro, nada mais é do que o objeto, que é uma representação. O mundo é representação nossa e nenhum de nós pode sair de si mesmo para ver as coisas como elas são. Tudo aquilo que temos conhecimento se encontra dentro de nossa consciência. Partindo do princípio que eu só posso "julgar" o mundo a partir da minha própria representação (que pode tornar-se factual através de indução, dedução, interpretação, etc.) tenho como ir formando a minha visão de mundo. E é dessa maneira também que compreendemos a priori vários fenômenos da natureza. A partir do momento em que a origem do meu ponto de vista não é racionalista, mas empirista, é claro que há também uma base histórica para a minha conclusão, afinal, é justamente aquilo que me parece, aquilo que percebi ao meu redor e concluí, a posteriori, através do intelecto. Em Marx, a origem do conhecimento relaciona-se inversamente à alienação que proporciona o ato da fé [de não compreender, não questionar, aceitar e acreditar que isso é uma virtude] e relaciona-o, necessariamente, às relações do Estado. 

Não é minha intenção, aqui nestas linhas, de limitar o conhecimento válido ao empirismo. Talvez isolando algum trecho em que abordei o conhecimento científico e filosófico fosse possível deduzir isso, mas não é verdade quando se observa todo o contexto: eu não descarto os conhecimentos não-empíricos, obviamente, como a Lógica, a Epistemologia, e dentre outros, até mesmo a Ética, que pode ser pensada tanto na empiria quanto no racionalismo. O que eu reitero - e não sou o único, como disse, isso é ponto pacífico na Filosofia Contemporânea - é que a Metafísica não é uma área que continua a ser abordada simplesmente por que não há mais sentido, hoje, em pensar o mundo metafisicamente, já que imaginar algo que jamais vai ser demonstrado é como andar numa esteira. Temos, com o método científico, maneiras mais eficazes de compreender a Natureza e a origem da matéria. De fato, o conhecimento científico é empírico, revisionista e tem credibilidade em relação ao conhecimento religioso justamente por fazer mais sentido. A religião, como nos diz o emblemático cientista Richard Dawins, faz com que 'fiquemos satisfeitos em não compreender o mundo'; e duvidar disso é já não ter fé a priori. Ora, os mitos já fizeram seu papel na história da humanidade, mas hoje não precisamos mais nos apegar desesperadamente a esses princípios que não exploram o potencial humano em desenvolver maneiras mais eficazes de compreender a coisa-em-si. O método científico não é engessado e já foi diversas vezes aprimorado desde o seu princípio no século XIX. A questão é essa: a ciência não tem - e nem pretende ter - todas as verdades do mundo, mas ela se propõe a pesquisá-las. E buscar respostas que façam sentido. 

O que promove o 'conhecimento' religioso, que não sejam medo da morte, busca de conforto, medo do inferno... fé? Concordo que nada deveria existir - por que as coisas existem? Essas questões estão cada vez mais próximas de um entendimento através da racionalidade científica, quando por exemplo nos explica o físico Peter Atkins que a soma de toda a matéria existente tende a zero. A cada novo passo da ciência no entendimento do mundo, perde mais e mais sentido imaginar o mundo metafisicamente e não é por acaso que pesquisas indicam que cada vez mais, menos pessoas se apegam à religião nos países com maiores índices em Educação, como aqui no Canadá, em que várias igrejas foram fechadas e em seus lugares temos museus, bibliotecas e até casas de show. Não há conhecimento válido quando alguma conclusão é engessada em sua origem por pressupostos (Ex.: Deus existe e Jesus é seu porta-voz. De que maneira poderemos ajustar nossos conhecimentos para que não haja contradição com essa verdade? É o que faz a Teologia, a pseudo-ciência de verdades absolutas). 

O abandono da metafísica como 'conhecimento válido' se deu muito gradualmente, após mais de dois mil anos de Filosofia. O desenvolvimento do método científico apenas desligou os aparelhos de uma metafísica que já se encontrava na UTI. O revisionismo está na própria natureza do conhecimento válido: ele não nasce pronto e acabado como a fé, ele é construído. Então até que uma tese científica seja válida ela vai passar por todo um processo de aprimoramento até que vire uma lei ou teoria (não no sentido de hipótese). E aí temos, novamente, razões para entender a credibilidade do princípio da razão e da ciência em detrimento do não-questionamento das coisas (fé). A verdadeira virtude é questionar.


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Entrevista (ácida) de Ângelo Monteiro para o Diário de Pernambuco

 
DIARIOdePERNAMBUCO
Publicação: 24/06/2012 03:00
Um homem sem rodeios Ao completar 70 anos, o poeta Ângelo Monteiro revela inconformismo diante da arte contemporânea e da classe média brasileira


      O filósofo e poeta Ângelo Monteiro não cria rodeios para condenar os já sinuosos caminhos da arte contemporânea. Segundo a arguição de Ângelo, detalhada no seu último livro, Arte ou desastre (É Realizações, 262 páginas, R$ 34), os objetos surgidos desta prática (ou do discurso que encobre o seu vazio) são marcados pela perda da individuação. Tais obras de arte não contariam mais com artistas, apenas com celebridades, assim como nenhum texto se distinguiria mais de outro, num cenário em que a anomia teria se tornado generalizada.

    Mas seria possível falar de arte contemporânea evocando um encíclica do papa Bento XVI? Para o alagoano de Penedo é possível, sim, quando o “ecletismo e nivelamento cultural convergem no fato de separar a cultura da natureza humana” (a citação vem do texto Caritas in veritate).

     Professor de filosofia, aposentado da UFPE, onde ingressou em 1976, Ângelo Monteiro é autor, entre éditos e inéditos, de mais de uma dezena de títulos de ensaio e poesia. Nesta conversa com o Diario, comenta seu último livro, critica professores universitários e declara seu amor filosófico pelos cachorros. Nem o repórter nem Monteiro gostam de falar sobre aniversários (que também foi um “gancho” desse encontro em seu apartamento, no Recife).
Entrevista >> Ângelo Monteiro "Você olha para certo tipo de cachorro e vê nele mais filosofia que em muitos colegas da universidade"

Por que a arte se tornou um desastre?
Estamos vivendo o império da antiarte. Em todos os setores. A maior parte do que se faz hoje em arte interessa mais à polícia de costumes do que ao domínio dela na cultura. Como o caso do costarriquenho Habacuc Vargas que, numa exposição, fez de um vira-lata uma instalação perecível. Até a morte do animal. Ou da artista plástica, acho que pernambucana, que fez de sua masturbação pública um ato de criação estética. A arte virou uma mescla delinquente de sua debilidade mental. Dentro desse quadro especial, no Brasil, você verifica que não há lugar para poesia dentro da cultura. Por quê? Se no âmbito internacional, isso ocorre, no Brasil, que é uma cultura periférica, a coisa é muito mais grave. O Brasil reflete e exporta o que há de pior. É a Meca da mediocridade.

Quem seriam os ideólogos do vazio?
Por trás dessa teoria, existe uma tremenda doutrinação marxista. A ênfase na coletivização em detrimento do indivíduo. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, enfatiza-se muito a celebridade. Acaba o indivíduo, mas cresce a celebridade. Parece contraditório, mas penso se tratar de uma compensação pela destruição da individualidade. Nem no romantismo tivemos uma valorização tão grande da figura do artista, porque tínhamos ainda a inspiração. Quando você evoca a inspiração, você admite algo que extrapola essa figura. É mais importante o artista enquanto instrumento da criação e não uma projeção de sua vaidade, de sua autossuficiência. Teóricos como (Gilles) Deleuze, (Jacques) Derrida e Michel Foucault passam a levar a sério tudo aquilo que não alcançou, até então, qualquer status na história da cultura. O exemplo típico é o urinol de Duchamp (obra intitulada A fonte), que está na capa do livro Arte e desastre. O urinol de Duchamp provocou mais questões teóricas que toda a história artística do ocidente. É um mistério, e nós sabemos qual é a função do urinol. Não me parece que tenha nenhuma função estética.

É o que o senhor chama de mania de desconstrução. A universidade tem lá sua responsabilidade nisso, não tem?
É a transgressão erigida em norma, em valor. Qualquer transgressão passa a ter valor pela sua capacidade de desconstruir toda criação valiosa. Ora, o que está por trás dessa desconstrução? Obviamente, trata-se de um tentativa séria de legitimar a erradicação do indivíduo do cenário estético e proclamar o coletivismo. Significa, do ponto de vista ético, a ausência de responsabilidade de cada artista particular. O que ele faz tem a sanção do coletivo, logo é bom. Essa visão compromete a ética e a estética ao mesmo tempo. Isso é ensinado e doutrinado nas universidades. Você tem que entrar na cartilha, estudar tudo isso e fingir que está gostando. O ambiente da universidade é deletério, tornou-se assim. Deixou de ser aquilo que fez parte de sua fundação. Carlos Magno procurou sábios, gostava de se cercar deles. Ao passo que hoje a turma procura técnicos de ignorância, pessoas ignorantes de qualquer tipo de humanismo. A verdade é essa. Eu vivi lá e vi o lance. A lembrança que eu tenho é de três ou quatro professores valiosos, apenas. Maria do Carmo Tavares de Miranda, que criou o departamento de Filosofia, Nelson Saldanha, Leônidas Câmara, Ariano Suassuna. São poucos. Dominantemente, o clima favorece mais a busca de cargos, de verbas.

O senhor sempre fala da figura do cachorro. Por quê?
Você olha para certo tipo de cachorro e vê nele mais filosofia do que em muitos colegas da universidade. Alguns cachorros têm aquele olhar melancólico de Heráclito de Éfeso, da escola do devir. Outros são heideggerianos. Eu tenho uma certa afinidade com os cachorros, apesar de não ser daquela escola grega dos cínicos, que é uma palavra que vem de cão (kynikos é adjetivo de kynon, que significa “cão”). Por que é que eu passei a identificar cachorros com filósofos? Porque Platão, que era um gozador emérito, declara em A República que o cão é o verdadeiro filósofo. O cão sabe distinguir o dono do estranho que está chegando. Qual a função da filosofia senão a guarda do ser? O filósofo é o cão de guarda do ser. E não é por acaso que, em Curitiba, uma cachorra se apaixonou por mim. Quando me viu ficou doida.

O senhor afirma que mesmo os ateus marxistas deveriam frequentar uma missa. Por quê?
Eu não tenho lembrança de nenhum cara de esquerda ético. A ética não existia em nenhuma relação humana marcada pelo marxismo. Ética é coisa da burguesia. Toda ética era burguesa. No convívio com esse pessoal, eu não via nenhuma preocupação ética. Agora imagine o que acontece num regime totalitário de esquerda. Ninguém é responsável por nada. Você pode matar à vontade à serviço da revolução. Tanto que eles são vampiros. Pegam uma figura como Nietzsche e vampirizam a serviço da causa. Não tem figura mais antimarxista que Nietzsche. Aliás, uma figura que é colocada como mestre da suspeita. Tudo é suspeita. Como é que você pode ter uma visão crítica se você não passa pelo estágio mítico? Isso é ideologia pura. O cara já sai vacinado contra tudo. Nunca esqueci de um espanhol que disse que a missa é uma tourada. Como? Tem ofertório, consagração e comunhão (risos). Ele queria dizer que a tourada é um espetáculo estético. Mas a missa é um espetáculo obviamente muito mais refinado que uma tourada. Você tem toda a encenação. É um auto. Então, se o cara não aprender a ter fé, ele aprende pelo menos a gostar de estética. O ateísmo é um péssimo conselheiro em arte. Por exemplo, 90% do que Pablo Neruda escreveu não vale nada, porque ele leu Marx. Nós somos um país jovem, mas já demos padre José Maurício (Nunes Garcia), Villa-Lobos, Jorge de Lima, Drummond, Gilberto Freyre. Eis o problema. O meu medo é que a classe média brasileira domine o mundo, porque ela vai acabar com a cultura universal. Uma classe média que paga para ver Roberto Carlos vestido de marinheiro dentro de um navio é uma classe média que não tem nada na cabeça. Isso é brincadeira para menino de 8 anos. A classe média brasileira é isso. Nela, não há lugar para a arte.

sábado, 21 de julho de 2012

Das tradições

Freqüentemente observamos alguém defendendo algum ritual, evento ou costume baseando-se no argumento dogmático da "tradição". Como se apenas o fato de ser antigo e costumaz, pudesse ser referendado e legitimado como algo justo e/ou ético. Mas, como tudo que seja dogmático, essa alegação não se sustenta por muito tempo quando questionada. 
Na tradição da tourada, o boi é torturado, ferido e sucumbe por muito tempo até a exaustão, quando acontece o golpe final.
Algo que é mau jamais vai tornar-se bom somente através da repetição e do tempo. Precisamos cultivar boas tradições para evitarmos causar ainda mais dor e sofrimento no mundo. As tradições não possuem um valor intrínseco e não tornam-se éticas tão-somente por serem antigas. Temos a capacidade de escolher e moldar sob quais tradições penderá a cultura dos nossos descendentes no futuro.
A circuncisão das crianças judias e algumas muçulmanas; as touradas, rodeios e outros tipos de pseudo-esportes baseados na tortura e no sadismo; a mutilação dos órgãos genitais das mulheres muçulmanas (e, na África, também de algumas cristãs); entre outras "tradições" jamais tornar-se-ão morais apenas por serem rituais antigos. Ao contrário, alguns costumes primitivos que venceram o tempo precisam ser revistos sob a luz da razão e evoluir com ela; o que significa a extinção de comportamentos bárbaros. Assim como foram vencidas as "tradições" da escravidão, mesmo com o forte apelo da Igreja Católica contra a abolição e dos torneios da morte no antigo coliseu de Roma, que era reverenciado pelo próprio Estado. Passada a fase, ninguém em sã consciência desejaria a volta desses costumes.
Não há um valor moral em si que seja conseqüência da repetição de um ato bárbaro, não é razoável conceber que apenas o tempo seja capaz de legitimar algo primitivo e repugnante como aceitável e ético. Os valores precisam estar permanentemente sob o crivo do princípio da razão e à luz da ciência para que possamos reunir condições de aumentar as possibilidades de felicidade e diminuir a dor das criaturas do mundo, já que a existência é inevitável a partir do momento em que a mesma é factual. Então, façamos valer a pena.
 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Separando o joio do trigo: dogma e razão

Já ouviram falar de algum crente que seja "cabeça aberta", "diferente", ou simplesmente que não é "fanático"? Ora, e o que seria o fanático senão o religioso que simplesmente aceita aquilo que está escrito em seu manual da vida, seja ele qual for? O dito "fanático" nada mais é do que o religioso que coloca em prática - e na mente - os supostos ensinamentos de seu deus. Alguém duvida que aqueles islâmicos assassinos do World Trade Center sejam homens de muita fé? A alcunha de "loucos" só serve pra disfarçar o óbvio. De loucos, não tinham nada. Eram devotos. Mas compraram a fé e pagaram o preço.

É claro que, especialmente no Ocidente, se alguém colocar em prática os "ensinamentos" bíblicos de sacrifício, escravidão e opressão à mulher, por exemplo, vai preso no mesmo dia. E aí, criaram a Teologia, uma pseudo-ciência que contorce a Bíblia no sentido de torná-la mais digerível, colocando interpretações mil e tentando mascarar o que está lá, muito cru. A Teologia é a própria manipulação da palavra na tentativa de manter o divino sem ter que aceitar que tudo aquilo só não parece ainda mais intragável, primitivo e absurdo por nos acostumarmos aos seus mitos desde a nossa mais tenra infância. É inconcebível que algum ramo que pretenda-se ciência possa partir de pressupostos. E me refiro a algo básico mesmo, conceitual.

Quando ouvimos alguém mencionar que há "crentes de cabeça aberta" ou até mesmo "não-praticantes", o que na verdade me vem à mente é só um rótulo onde se lê "evangélico", de conteúdo vazio. Os evangélicos de fato, propagam a desigualdade que está presente em seu manualzinho da vida, vulgo bíblia - e se apoiam nessas mitologias primitivas pra propagar esse tipo de insanidade, já que só mesmo através da fé e da ordem divina é possível defender esses tipos de atrocidade. O que aconteceria ao homem que pretendesse ter o outro como propriedade de si, se não fosse por ordem de um deus? E isto vale tanto para a escravidão como a dominação de gênero.

Com tantas atrocidades em seus manuais, quem são mesmo os radicais: os crentes ou os seculares? No fundo, qualquer minoria é comumente taxada de "radical". Esta palavra hoje é, de fato, quase um sinônimo de "integrante de uma minoria". Estado laico significa, literalmente, sem religião. Confundir essa premissa com ateísmo, como querem os que são contra a causa dos ateus que lutam por seus direitos de liberdade, respeito e dignidade (já ouviu o clichê "estado laico não é estado ateu"? Pois é) só causa confusão e afasta da realidade. Qualquer apologia de qualquer tipo de dogma deveria ser proibida pelo próprio estado. Eu sou ateu, mas acho que um "Estado Ateu" seria tão absurdo quanto um estado teocrático qualquer, já que esse tipo de postura a respeito do sobrenatural deve ser ignorado pelo estado, ao invés de ser oficializado de alguma forma. No fim das contas, o ateu simplesmente ignora a religião, no limite de que a religião não se contraponha a direitos básicos fundamentais - e aí é que o problema começa, já que todas as religiões querem impor verdades em detrimento do conhecimento racional. 

Não há Ética em manuais prontos e acabados. Temos, no máximo, um código moral e que, por ser imóvel, não pode ser considerado Ética, esta que é uma área abordada pelo conhecimento racional da Filosofia, que, ao contrário, é fluida. O máximo que pode-se alcançar no dogma é algo rígido e imune à crítica e à evolução de seus preceitos. É impossível conciliar dogma e princípio da razão por questões básicas conceituais. É o mesmo grande problema da Filosofia Medieval, que parte de pressupostos e aniquila a crítica desde sua origem.

É perigoso cairmos na relativização de tudo, e é também amiúde a saída dos crentes e inimigos da razão em geral: nivelar todo tipo de conhecimento e argumentação de uma só maneira, em nome de uma falsa tolerância. Mas não é possível, devido a simples contradições, como um composto bifásico. O preto nunca será branco e o óleo não se mistura n'água. O que legitima o princípio da razão é a origem de tal conhecimento (que se OPÕE justamente ao dogma), e pelo fato do conhecimento racional e/ou científico ser, necessariamente, REVISIONISTA, ele jamais pode ser considerado dogmático salvo caso de muita ingenuidade. Algo que não parte de pressupostos e que busca legitimar-se através de evidências jamais poderá estar lado a lado com quaisquer tipos de dogmas, que devem ser, efetiva e justificadamente, combatidos. A tolerância precisa ser praticada, com amor e respeito, sempre. Mas quando estamos falando de idéias, precisamos nos manter ao lado da imparcialidade e do "amor à sabedoria". E, quando há respeito mútuo, a verdade tende a sobressair-se com o tempo.

Três pontos devem ser reforçados em relação às colocações acima, devido ao repeteco dos que se opõem ao conhecimento racional, utilizando-se da insistência em pontos já superados de suas falácias, como se já não tivessem sido eficientemente combatidas:
1. Não é verdade que a o princípio da razão parta de pressupostos e seja revisionista ao mesmo tempo, é uma contradição óbvia. 2. É comum hoje em dia, em nome de uma falsa tolerância, admitir-se que todos os pontos de vista têm igual valia, mas isto simplesmente não faz o menor sentido quando minimamente questionado. 3. Nem a razão e muito menos o conhecimento científico são infalíveis - e nem pretendem ser - mas a origem de seus resultados os legitimam como conhecimentos mais confiáveis que qualquer tipo de dogma, fazendo que os dois primeiros sejam completamente opostos ao último. 

Um dos maiores desafios da Filosofia do nosso tempo é continuar pensando a Ética de maneira isenta, sem a interferência de sistemas fechados, prontos e acabados - como querem os dogmáticos.  Algo "elaborado" jamais poderá equiparar-se a algo desenvolvido na base da criatividade, metafísicas hipotéticas que só se sutentam em fantasias e imaginação. É justo que elas tenham sido criadas num mundo em que a humanidade não tinha condição de entender e explicar o mundo. Uma vez desenvolvida a Filosofia e, posteriormente, a metodologia científica, não há sentido e necessidade em insistirmos em não compreender a existência das coisas através de evidências. Não precisamos mais dos conhecimentos mitológicos, eles já cumpriram o seu papel. A credibidade dos conhecimentos filosófico e científico se dão justamente por não dependerem dos dogmas em geral.

O que diferencia a credibilidade dos conhecimentos 'verdadeiros' da força absolutista dos dogmas é justamente a origem dos mesmos. A condição a que se chega nos resultados faz toda a diferença. Isso é algo factual, e reconhecer essa obviedade é importante para não cairmos na areia movediça da relativização de absolutamente tudo, tornando qualquer absurdo acrítico - como violência física contra as minorias, por exemplo - defensável.

Aceitar a morte, ao invés de temê-la, é amadurecer. Discordo, como querem alguns, que a escolha seja entre uma mentira confortante e uma verdade que incomoda. Penso que a consciência da finitude pode trazer mais qualidade de vida.

 


Pessoa de bem?

Infelizmente, a religião e seus rituais são utilizados, em geral, só para o alívio da consciência de quem crê. O ego dos crentes fala mais alto do que o mundo que agoniza ao seu redor. E, no fim das contas, tudo se justifica pela fé, ainda que para olhos neutros pareça absurdo.
 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Chama de Vela

Ah, Senhor! Se tu existisses
Dar-me-ia Teu sonoro acorde
Em que plantas, que me vistes
Numa pureza sem que desconforte

A viagem branda que existe
Em mim, nesta hora que m'entorte
Me banha de fome quando feriste
Este amor que é pura sorte

Proclamo o dedo em riste
A chuva que lava os comportes
Para bruma alinhada que abriste
Não me basta ao regar este corte

A chama doce da raiz, conquiste
De maneira que a chuva tudo prove
Quando a chama quente e triste
Separe a dor ferrenha desta morte.

25/02/2012

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Da igualdade de oportunidades à igualdade de consideração



 Desde o pós-feudalismo, do mercantilismo e do desenvolvimento do capitalismo, em nossa cultura a má distribuição das riquezas, desde que haja a igualdade de oportunidades é vista de forma natural, assim como nos acostumamos a ver pessoas com diferentes status sociais sem nenhum espanto.
A idéia é de que não há nada de errado em Macedo ganhar vinte e cinco mil reais enquanto Pereira ganha mil e duzentos reais, desde que Pereira tenha tido a mesma oportunidade de estar onde Macedo está hoje. Suponhamos que a diferença de renda se deva ao fato de que Macedo é juiz e Pereira um trabalhador rural. Isso seria aceitável se Pereira tivesse tido a mesma oportunidade em formar-se em Direito e depois estudar para concursos, com o que se pretende obviamente dizer que ele não fora excluído do curso de Direito por alguma atitude discriminatória ou alguma inaptidão relevante para tal. Vista deste modo, segundo Singer¹, a vida seria “uma espécie de corrida na qual é justo que os vencedores levem os prêmios, desde que todos tenham o mesmo ponto de partida. O ponto de partida igual representa igualdade de oportunidades, e isto, dizem alguns, é o máximo a que pode chegar a igualdade.”
Contudo, essa visão é por demais superficial e não resiste a um exame mais aprofundado. Várias questões podem ser levantadas, como o motivo pelo qual os resultados obtidos por Pereira não foram tão bons quanto os de Macedo; talvez a educação de Pereira até aquele momento tivesse sido inferior e, convenhamos, equiparar os níveis das escolas é um objetivo tão distante no caso do Brasil que soa quase que como uma utopia, mas ainda assim é o alicerce básico a ser defendido a todo aquele consciencioso que tiver pretensão de atingir algum nível de igualdade de oportunidades. Admitindo-se que Pereira de fato estudou numa escola em condições inferiores, podemos afirmar que fica bem claro que ambos não estavam competindo em igualdade de condições e, ainda que admitíssemos que a escola tenha sido a mesma, algumas crianças são favorecidas pelo tipo de lar de qual provêm: livros disponíveis, quarto silencioso que torne possível uma boa concentração, harmonia no lar, etc. são fatores relevantes que podem explicar, por exemplo, do porquê de Macedo ter estudado na mesma escola e ter tido resultados superiores em relação a Pereira, que precisa dividir o quarto com mais dois irmãos e agüentar reclamações do pai, para quem ele está perdendo tempo com livros ao invés de o estar ajudando na lavoura.
Contudo, não é possível igualizar os pais ou os lares – a menos que propuséssemos o abandono do contexto familiar tradicional e criar os nossos filhos em creches comunitárias – como no sistema d'A República, de Platão, onde as crianças sequer sabiam quem eram seus pais – isso se torna impossível. Mesmo que atribuíssemos, fantasiosamente, que todas as crianças têm as mesmas condições de acesso e qualidade de ensino e seus lares proporcionem conforto e harmonia, ainda há outras objeções, como por exemplo a capacidade cognitiva e herança genética de cada criança. Vista dessa forma, mesmo a igualdade de oportunidades não parece atraente, haja vista que a criança dependerá meramente do fator ‘sorte’, que os recompensará com melhores resultados, enquanto aqueles com maiores dificuldades de concentração e armazenamento de informações, por herança genética, por exemplo, não teriam a mesma chance.
Singer¹, questiona se “será realista almejar uma sociedade que recompensa as pessoas segundo as suas necessidades, e não (...) [a sua capacidade cognitiva], a sua agressividade ou outras aptidões herdadas? Não teremos de pagar mais às pessoas por serem médicos ou advogados, ou professores universitários, por realizarem o trabalho intelectual exigente que é essencial para o nosso bem-estar?” Não há dúvidas de que se algum país quisesse igualar os salários de todos os cidadãos, aqueles que ganhavam mais iriam promover uma emigração em massa. Se algum país adotasse um sistema desses, e os outros países não o fizessem, teríamos algo como uma “fuga de cérebros”. No comunismo, é o problema que acontece quando ele não se dá em todo o mundo. Na experiência soviética e nos países que, de alguma forma, se espelham no socialismo, como Cuba, isso é um fenômeno notável. Marx esperava que o comunismo se alastrasse por todo o mundo, e essa era a maior preocupação de Lênin. Quando os socialistas perceberam que sua revolução não se alastrara o suficiente, restringiram violentamente as liberdades individuais, inclusive a de emigrar. Fizeram vigílias armadas nas fronteiras para evitar a fuga de seus cidadãos para países que recompensavam melhor o trabalhador qualificado, bem como para evitar o contato com os ‘inimigos’ externos².      
O “socialismo em um só país” exige que a nação viva sob constante vigília, transformando-a num campo armado, com inúmeros guardas de fronteiras, vigiando tanto os próprios cidadãos quanto os inimigos externos. Essas conseqüências sugerem que o socialismo não valha a pena o preço a ser pago por ele.

¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
² SINGER, Peter. One World: The Ethics of Globalization. New Haven: Yale University Press, 2004.
 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Ética e Eutanásia


Há uma harmonia nas concepções de Peter Singer a partir da universalizabilidade e da consideração de interesses, onde tudo se encaixa quando aceitamos as máximas que fundamentam os seus preceitos. Tal como o estreitismo entre a questão do aborto, no autor, como a questão da eutanásia.
A eutanásia tem sido freqüentemente debatida hoje por conta, em grande parte, das novas tecnologias e que, através de seus aparatos, conseguem estender a vida em estado miserável e/ou vegetativo até as últimas conseqüências, e o objetivo disso torna-se questionável nos casos em que manter uma vida em estado miserável só virá a trazer sofrimento ao doente e à família, e no estado vegetativo, será somente a família o alvo do padecimento, já que o próprio paciente já não tem qualquer capacidade de entender o que se passa, de sentir, capacidade de discernimento, enfim, o paciente encontra-se numa debilidade tão grande que nem mesmo mais sofre ou tem quaisquer tipos de prazeres.
A “eutanásia”, nos dicionários, é descrita como uma morte serena, sem sofrimentos. Há uma ligação íntima da eutanásia, neste sentido, e o suicídio desde os tempos primórdios da História da Filosofia. Ambos os casos estão relacionados com a autonomia daquele agente que sofre: só ele será capaz de decidir para si entre a vida e a morte – e nesse caso encaixar-se-ia com o conceito de “eutanásia voluntária” em Singer.
Na História da Filosofia, nossa concepção atual sobre “eutanásia” confunde-se com o ato do suicídio, que é um tema que é tabu em todas as sociedades. Ainda que em casos específicos, como o dos estóicos, ou no caso do suicídio pela honra da família, como acontece desde os tempos primórdios da cultura japonesa, é um tema que causa espanto e controvérsias.
Os estóicos respeitavam o ato do suicídio. Era até recomendado para quando se pudesse decidir que a vida não tinha mais o porquê de ser vivida. Os estóicos suportavam as adversidades com calma e dignidade, mas também acreditavam que as circunstâncias da vida de um homem podia se degradar a tal ponto (seja devido a uma tragédia pessoal, à ruína e a subseqüente miséria, seja devido a uma doença dolorosa e terminal), que um suicídio indolor se tornava a coisa mais racional a fazer. Há nesse tipo de argumentação um paralelo óbvio com a questão da eutanásia, que ganhou novos aspectos etimológicos à medida que a tecnologia foi avançando.
A concepção de eutanásia, que geralmente era tolerada ou incentivada pelos antigos, por diversos motivos como alívio da dor e até mesmo em nome da honra, vai mudando com o tempo e coincide com o avanço do cristianismo no Ocidente e a questão da sacralização da vida volta a ganhar destaque nesse contexto. Em geral, não há sentido simplesmente em manter uma pessoa cuja morte é certa e a dor agonizante, viva. O paradigma que estamos vivendo em relação ao direito à vida remonta a questão cristã do caráter sagrado da vida humana, donde uma vida que, segundo essa doutrina, é dada por Deus, deverá ser mantida custe o que custar, ou seja, até suas últimas conseqüências. Acontece que os novos métodos de preservação da vida em determinados casos terminais faz necessário o questionamento destes dogmas religiosos, em prol do alívio do sofrimento daqueles que, amiúde, nem sequer têm o direito de escolher entre a dor e a morte. As novas tecnologias nos apresentam novos questionamentos a respeito de ética e moralidade – e é aí que se encaixa a Ética Prática com todo o seu arsenal filosófico que privilegia o pragmatismo da aplicabilidade do pensar filosófico e do pensamento lógico em prol da vida, contudo não de forma cega e a todo custo, mas “vida” até o momento em que haja sentido para que se denomine enquanto tal.
No Brasil, a lei sobre esta questão se manifesta e encara como homicídio a eutanásia, o ato deliberado de apressar o fim de quem está morrendo. Nesse jogo entre o alívio da dor e a “tortura”, a ortotanásia, “a morte no momento certo”, é considerada omissão de socorro e tem pena de um a seis meses de prisão. Apesar disso, a ortotanásia é freqüentemente praticada. O médico retira os aparelhos e deixa o doente seguir o seu curso de morte. Trata-se do modo mais comum de morrer nas UTI’s pediátricas do Brasil, como verificado em dois estudos publicados em março de 2005 pela Revista Brasileira de Pediatria, sobre 167 casos ocorridos em 2002 nas principais UTI’s pediátricas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Estes estudos mostram que pelo menos 36% das crianças morreram após a “limitação do suporte de vida”, expressão que reúne decisões como não entubar, não reanimar e até tirar o suporte vital.
O estudo observou que pelo menos 30% desses casos são omitidos ou reportados contraditoriamente nos hospitais. Mas há quem veja na própria legislação fundamentos para apressar a morte quando o tratamento só prolonga o sofrimento. O 1º artigo da Constituição assegura a dignidade da pessoa humana, e esse direito deveria ser estendido até os últimos momentos – é o que alega, por exemplo, Lívia Pithan, professora de Direito da USP.
Hoje em dia é que o termo “eutanásia” é utilizado para referir-se à morte daqueles que estão com doenças incuráveis e sofrem de angústia e dores insuportáveis. É uma ação praticada em benefício dos doentes e tem por finalidade poupar-lhes a continuidade da dor e do sofrimento. Singer inclui, porém, pessoas sem capacidade de decisão, onde a medicina aponta para uma vida de dor e privações caso estendida. Há três tipos de eutanásia. Ei-los:
- Eutanásia voluntária;
- Eutanásia involuntária;
- Eutanásia não-voluntária.
A eutanásia voluntária é quando o próprio paciente em questão tem ainda condições de pedir pela própria morte. A maior parte dos grupos que brigam por mudanças legais em relação à eutanásia referem-se à esse método¹.
Na eutanásia involuntária, a pessoa morta tem condições de consentir com a própria morte, mas não o faz, tanto por que não lhe perguntaram se quer morrer quanto por que lhe perguntaram, e ela quer continuar vivendo. Há uma diferença entre matar alguém que prefere continuar vivo e matar alguém que não consentiu ser morto, mas que, se perguntado, teria dado o seu consentimento.¹
Matar alguém que não consentiu ser morto só pode ser apropriadamente visto como eutanásia quando o motivo da morte é o desejo de impedir um sofrimento intolerável da pessoa morta. Os casos autênticos de eutanásia involuntária são os menos comuns, todavia.
Essas definições abrem espaço para um terceiro tipo de eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha entre a vida e a morte, a eutanásia não seria nem voluntária nem involuntária, mas não-voluntária. Dentre os incapazes de dar o seu consentimento estariam incluídos os bebês que sofrem de doenças incuráveis ou com graves deficiências e as pessoas que, por motivo de acidente, doença ou velhice, já perderam para sempre a capacidade de compreender o problema em questão, sem que tenham previamente solicitado ou recusado a eutanásia nessas circunstâncias.¹
Superficialmente, o direito de morrer se basearia no princípio de autonomia, onde toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida. A publicação filosófica “Ciência & Vida – Filosofia”, nº 38, cuja capa estampa “Eutanásia” em destaque, cita que “para Nietzsche, não é desmedido dizer que a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor”. A mesma publicação ainda cita que, “no Brasil, a eutanásia é considerada uma forma de homicídio. A lei não faz qualquer referência a ela, mas a prática é julgada de acordo com o artigo 121 do Código Penal, que pune crimes de homicídio com penas de 6 a 20 anos de reclusão. Há projetos tramitando no Congresso para mudar tal situação. Um deles faz parte da própria reforma do Código Penal. Parte do anteprojeto que está sendo elaborado para dar lugar à legislação penal atual prevê a alteração de dispositivos do Código Penal, legislando sobre a eutanásia em dois itens do artigo 121. No parágrafo 3º, buscando reduzir a pena de reclusão, caso o autor do crime tenha agido por compaixão e a pedido da vítima. No 4º, tentando descriminalizar o ato de deixar de manter a vida de alguém por meios artificiais, caso a morte tenha sido atestada como iminente e inevitável, desde que solicitado pelo paciente ou parentes próximos”.

¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.