terça-feira, 21 de maio de 2013

Resistência ao tempo

* Por Ângelo Monteiro, filósofo, poeta e ensaísta pernambucano.


Como a ninguém é possível escapar às injunções do tempo, muitos preferem mascará-lo, quer pelas diversas técnicas de remoçamento, quer por meio de renovadas operações plásticas: já que é menos difícil conviver com um tempo mascarado do que com a fisionomia que ele vai assumindo a cada momento, ao longo de sua marcha entre os homens e as coisas. Embora disponhamos da memória para preservar a presença de tudo o que amamos, ou que supomos ter possuído um dia, nunca nos abandona a ilusão de afastá-lo para além de nós, sobretudo quando a juventude ensaia seus primeiros sinais de despedida.
O mesmo tempo que nos permite alcançar as metas almejadas, aponta para os limites daquilo que nos chegou às mãos. Nas diferentes ocasiões em que tentamos medi-lo - antes com legendárias ampulhetas, hoje com sofisticados relógios - nos recusamos a compreender que dele, e apenas dele, depende a medida do que lateja de vitalidade, ou adquire uma forma inanimada neste mundo. Por mais que busquemos capturá-lo, ele com frequência nos surpreende, sem nos darmos conta de que estamos permanentemente sujeitos aos seus caprichos ou entregues à sua completa disposição.

A dialética entre o homem e o tempo, ao conferir um sentido à história humana, não consegue nos dar acesso jamais a essa outra dialética que não cessa de nos assediar e perseguir, dentro e fora das fronteiras individuais, no sempre recomeçado jogo do eterno com o passageiro. As mudanças costumam chegar abruptamente, antes dos acontecimentos cumprirem seu necessário curso, e, outras vezes, aquilo que estava a caminho toma um rumo totalmente contrário à sua própria direção.

E como toda memória se mantém unicamente no nicho da cultura, convertemos a existência da escrita em registro não só das nossas mãos mas dos nossos passos. Por isso, ao lado das interrogações insubornáveis sobre a vida e sobre a morte, pertencentes ao filosofar, e da conjuração das potências do sagrado, e suscitada pela necessidade do religar-se ao divino, não podemos nos desvencilhar - enquanto traço de união das demais artes - do apelo que nos fazem, originariamente, as escrituras sagradas ao lado das profanas. Pois escrever é a forma talvez mais poderosa de resistir ao tempo: e em face dos enigmas continuamente propostos pela realidade, até agora não conhecemos outra depois da oração.
Publicado no Jornal do Commercio no dia 21/05/13.