segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A República, Livro VIII

As formas de governo
Na busca de uma organização perfeita, ter-se-ia nessa cidade uma comunidade das mulheres, a comunidade dos filhos e de toda a educação, assim como a das ocupações em tempo de guerra e de paz, e serão soberanos os que se revelarem os melhores como filósofos e como guerreiros.
Foi também estabelecido que após as nomeações, os chefes deverão conduzir e instalar os soldados em suas casas comunitárias, sendo imperativo também não esquecer a regra dos bens em relação aos soldados.
Estes soldados receberiam uma espécie de salário – o suficiente para manterem-se durante um ano – e deveriam zelar pela segurança, a deles própria, e do resto da cidade; além de, caso necessário, fazer com que as leis se apliquem à base de suas forças.
Esgotando-se a divagação a respeito de Estado, supor-se-ia que este modelo pensado era bom e os outros eram maus, e que os homens nesse estado imaginário também assim o seriam, frutos de dedicada instrução. As outras formas de governos seriam falhas, posto que a proposta por Sócrates era boa.
Sócrates teria dito que, entre as outras formas de governo, haveriam quatro espécies dignas de atenção, e observar-se-ia através delas, em quais os homens seriam mais felizes ou mais infelizes, de modo que este termômetro baseado na satisfação populacional pudesse julgar o próprio mérito do sistema adotado em cada cidade.
Sem pestanejar às perguntas de Glauco, Sócrates prontamente cita as formas de governo de que falava: a primeira seria o governo “muito elogiado” (258) de Creta e da Lacedemônia, O segundo seria a oligarquia, que, nas palavras do grande filósofo, ‘só se louva em segundo lugar’ e é detentora de ‘vícios vários’. O terceiro, e em oposto ao último, viria a Democracia e, por fim, a Tirania, que se contrapunha a todos os outros e seria a “quarta e última doença do Estado”. (258)
Sócrates (Platão) credita as monarquias hereditárias, os principados venais e os governos semelhantes a nada mais que meras formas intermediárias e não só encontrar-se-iam entre os gregos, mas também entre os bárbaros.
Sócrates assegura que todas as formas de governo provêm do caráter de quem os faz e quem os mantêm, além dos costumes dos próprios cidadãos que habitam nas cidades em que essas tantas formas de governo são implementadas. Daí, conclui Sócrates, se existem cinco espécies de cidades, também assemelhar-se-iam delas os caráteres das almas de seus indivíduos.
A proposta de Sócrates é observar, dentre estas formas de governo, qual seria a mais justa e a mais injusta, e a partir daí fazê-las oposição, para a análise de felicidade ou infelicidade de seus cidadãos.
O próximo passo seria analisar os homens de cada governo; ao “governo da honra”, Sócrates chamou-lhe “timocracia”, depois a oligarquia, em terceiro lugar a democracia, e por fim, procurar considerar a tirania e a alma do tirânico.
Sócrates percebe que as constituições das cidades modificam a partir de quem está no poder, e há de se analisar de que maneira se passa da aristocracia para a timocracia. Pondera-se a possibilidade da discórdia entre os guardiões da cidade imaginária e através de que meios isso poderia acontecer.
É interessante notar que o próprio Platão reconhece que mesmo sendo o seu Estado exeqüível e mesmo admitindo que tal Estado dificilmente esfacelar-se-ia, admite que tudo o que nasce é passível de corrupção e sentencia que também esse sistema de governo não durará eternamente.
Platão admite que, por mais sábios que sejam os chefes de tal cidade, “não conseguirão nada pelo cálculo unido à experiência”, (260) e isso seria independentemente das gerações futuras. Estas coisas escapar-lhes-iam, e o controle de natalidade por certo em algum ponto da história sucumbirá. Para Platão, o sustento da excelência da prole da cidade só dar-se-ia com o nascimento dos mais apropriados para as tarefas e, “quando os (...) guardiões, não (...) conhecendo [a importância destas regras], unirem moças e rapazes fora de propósito, os filhos que nascerem desses casamentos não serão favorecidos nem pela natureza nem pela fortuna”. (260) Os antecessores à estes até colocariam tão-somente os melhores à cabeça do governo, mas ao passar das gerações isso perderia a importância. E os então guardiões, apesar de seu status, não honrariam as tradições inicialmente planejadas, como a música e a ginástica. Em suma, as novas gerações seriam incultas, ou bem menos cultas.
Esses novos chefes não seriam capazes de zelar pela força e harmonia do Estado, esquecer-se-iam dos valores do ouro, prata, bronze e ferro. E da mistura destes metais, resultaria inconveniência, irregularidade e desarmonia, que por sua vez, engendraria guerra e ódio. Estes chefes seriam cobiçosos de riquezas, como os cidadãos dos estados oligárquicos, adorarão com paixão e “às ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados, nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem muito bem lhes apetecer”. (262) O Estado perfeito já estaria sob risco.
Talvez essa ‘premonição’ platônica seja de fato uma prevenção, para que, se por ventura seu Estado de fato existisse, coexistiria uma vacina para os eventuais males que poderiam causar a deterioração de seus valores; para que os novos chefes, de gerações posteriores, não permitissem a displicência na vigilância de tais princípios.
Continuando sua análise sobre o comportamento dos indivíduos em determinados regimes, Sócrates menciona sobre a natureza do cidadão timocrático: tais homens seriam cobiçosos de riquezas, amantes de honrarias e, durante a mocidade, um homem assim poderia até desprezar as riquezas, mas com o decorrer do tempo esses valores inverter-se-iam, por que sua natureza incita-o à avareza e a sua virtude não é pura. A imagem do jovem ambicioso é a imagem do governo timocrático.
Já na oligarquia, essa tratar-se-ia de um governo fundamentado no recenseamento, em que os ricos mandam e o pobre não participa do poder. A passagem da timocracia para a oligarquia parte da desobediência das próprias leis timocráticas. Deturpar-se-iam as leis, quando descobrir-se-iam os motivos de despesas e fariam por satisfação. E a assim a massa segue estes pioneiros por conseguinte. Sócrates conclui que, quando a riqueza e os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são tidos em menor estima. O comando da cidade é executado não pelo melhor, mas pelo mais rico e influente. Disto procede uma cidade não una, mas dupla: a dos ricos e a dos pobres.
Da oligarquia à democracia, diz o filósofo, transmuta-se pelo efeito da insaciável cobiça do indivíduo de possuir os bens e tornar-se tão rico quanto possível. Os chefes democráticos devem sua autoridade aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusam-se a elaborar leis que reprimam a ‘libertinagem’ dos jovens, de forma a manter seu patrimônio, haja vista que anseiam por mais riqueza e poder. Fatualmente, conclui-se que temperança e riqueza não podem coexistir num único indivíduo.
A democracia é “provavelmente” (274) seria o mais belo de todos os governos. Os cidadãos dessa cidade organizariam suas vidas como melhor lhes conviriam, de modo que nestas cidades há cidadãos de toda espécie: comerciantes e mendigos, homens bons e maus. Sócrates admite que “quem pretende fundar uma cidade, (...) é obrigado a dirigir-se a um Estado democrático, como a um bazar de constituições, para escolher a que prefere e, a partir desse modelo, realizar em seguida o seu projeto”. (274)
Concomitantemente a esse conceito, Sócrates argumenta que uma sociedade democrática não poder-se-ia praticar a justiça, posto que uma criança nascida fora das bases de sua cidade planejada, a não ser que fosse dotada de excelente caráter, invariavelmente se inclinaria para o caminho dos vícios e na base da injustiça, por intermédio da competição e da falta de unidade que se observa numa cidade democrática.
Resta então, aos bravos desbravadores da República, divagar a respeito da tirania. Sócrates coloca em evidência a origem democrática da tirania e ressalta que a passagem da democracia à tirania é semelhante à passagem da própria oligarquia à democracia. O desejo insaciável da liberdade, por parte dos comandantes outrora democráticos, aliada à indiferença por todo o resto os obrigaria a recorrer à tirania.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A República, Livro VII

A alegoria da caverna
Para exemplificar a diferença entre a natureza humana no que concerne a instrução e a ignorância, Platão desenvolve uma alegoria influenciada por sua própria experiência pessoal.
Imagina-se uma morada subterrânea, como uma caverna, com uma entrada aberta à luz. Nela, residem homens que lá estão desde os primórdios de suas vidas, e nela permanecem acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que os que lá habitam não podem mexer-se e nem enxergar senão o que está diante deles.
A luz que chega é através de uma fogueira, acesa numa colina que se ergue por detrás deles, e entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Em paralelo à estrada, está construído um pequeno muro, de forma que ao longo desse muro podes ser avistadas as sombras de homens e animais de todas espécie e o que eles transportam: seja de pedra, madeira ou qualquer espécie de matéria. Dentre esses transeuntes, naturalmente alguns falam e outros, não.
Nessa analogia platônica à raça humana, observa-se que durante toda a vida dos prisioneiros, eles nada puderam ver além das sombras projetadas pelo fogo que passam pelo muro que fica defronte à caverna, já que estão imóveis durante todo o tempo.
Obviamente, estes habitantes tomariam por objetos reais as sombras que lhes eram informadas por suas faculdades sensoriais. Até mesmo o eco que por ventura pudesse vir da parede à caverna, seria julgado como advindo da sombra, que afinal passava diante deles.
Então, para estes homens, só atribuirão realidade às sombras dos objetos fabricados. Imagina-se, então, que se liberte um desses prisioneiros e ele seria obrigado a caminhar, voltar o pescoço e erguer os olhos para a luz. Ao fazer tais movimentos, sofrerá, e tal deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Ele não associará tais objetos tão facilmente, já que passou a vida inteira nas ‘trevas’ e a luz seria por demais forte para que a priori ele pudesse distinguir alguma coisa. Caso alguém chegasse e dissesse a esse homem que o que ele via antes não passava de vultos, e agora ele pode perceber as coisas com mais clareza, se o obrigar, à força das perguntas, a dizer o que é, provavelmente ele ficará embaraçado e as sombras de que viu a vida inteira lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora.
Num segundo exemplo, Platão supõe no caso deste mesmo homem ser arrancado à força da caverna e ser obrigado a permanecer à luz do Sol, sofrerá e queixar-se-á dessa violência a contragosto. De início, com os olhos ofuscados pelo brilho da luz, continuará não sendo capaz de distinguir as coisas do mundo. Contudo, com o hábito de ver os objetos da região superior, começará distinguir mais facilmente as próprias sombras; em seguida, as demais imagens e dos reflexos n´água, e por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá contemplar os corpos celestes à noite e a luz do dia. Por fim, será o próprio Sol o contemplado e não mais as suas imagens. Com o tempo, este homem concluiria que é o Sol que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que o próprio Sol, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com seus companheiros na caverna.
Altamente influenciada pelo exemplo de Sócrates, quando por exemplo Platão cita que o homem percebe com mais clareza “à força das perguntas” (referência à maiêutica), a alegoria tem também seu intuito político, pois o homem “lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, (...) se alegrará com a mudança e lamentará pelos que lá ficaram” (227)
A analogia com o exemplo vivido por Sócrates também pode ser percebido na continuação do que segue na alegoria: supondo que nessa gruta cavernosa se distribuíssem honras, louvores e recompensas “àqueles que se apercebessem, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, (...) e que por isso era o mais hábil em adivinhar sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos”. (227) Este homem certamente preferiria viver a mais miserável das vidas lá fora à viver das antigas ilusões das quais vivia.
Numa sutil postura política, possivelmente também análoga a Sócrates, Platão imagina ainda: E se caso esse homem adaptado ao mundo exterior voltasse à caverna e sentasse em seu antigo lugar? Ficaria com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz. E, voltando à competição com seus companheiros ainda presos às correntes, para julgar as sombras de sempre, teria grandes dificuldades para retornar à mesma aptidão que antes tinha para distinguir os tais vultos. Então os outros prisioneiros zombariam dele, dizendo que voltou com a vista estragada por ter estado lá em cima. “E se [este homem] a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?” (228)
Platão reforça que é preciso comparar o mundo que nos cerca com a vida presa na caverna e a luz do fogo que a ilumina com a luz do Sol. Assim como o prisioneiro que se liberta e descobre a verdade, também nós ansiamos por descobri-la: “Quanto à subida à região posterior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira”. (228)
Para Platão, no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e só é possível aprendê-la sem de fato concluir que ela é a causa de tudo que existe de belo em todas as coisas. No sensível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência. É preciso perceber a idéia do bem para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Voltando, no presente texto, à análise da abordagem em forma de diálogo - com Sócrates fazendo o papel de Platão - a divagação é contínua a respeito do bem e da capacidade das pessoas em conhecer o que é bom e justo. Sócrates questiona a Glauco se o estudo de todas as ciências examinadas é capaz de conduzir à descoberta das relações e do parentesco entre elas. Se há um elo que as une, aborda a respeito de um parentesco entre as ciências. Sócrates afirma categoricamente que se esta não for uma verdade, de nada terá sido útil tanta labuta.
Sócrates afirma que todos esses estudos nada mais são do que um prelúdio do vasto oceano em que ainda é preciso navegar. Porém, reconhece a dificuldade em fazer conhecer a sabedoria pessoas que são simplesmente incapazes de dar razão ou se mostrar ao menos razoáveis.
Contudo, a dialética percorre por esse campo, faz parte do inteligível, mas é imitada pelo poder da visão. A ocularidade é tida como a primeira forma de adquirir o conhecimento, e primeiro olha-se para os seres vivos, depois os astros e por fim o próprio Sol. Eis que alguém tenta, através da dialética, sem o auxílio de nenhum sentido, mas por intermédio da razão, alcançar a essência de cada coisa e não se detém antes de ter apreendido apenas pela inteligência a essência do bem, atinge o limite do inteligível.
Recorda-se do homem da caverna, desde a sua libertação das correntes, a sua conversão das sombras para as figuras ‘artificiais’ e a luz que as projeta, a sua ascensão para o Sol e daí a incapacidade em que se vê ainda de olhar para os animais, as plantas e a luz do Sol, que o força a mirar nas águas as suas imagens ‘divinas’ e as sombras de coisas reais.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A República, Livro VI

A base ética e a base epistemológica

Após a conclusão de que ‘filósofo’ denominar-se-ia apenas àqueles que se prendem à verdade, ou seja, enxergam as coisas em si mesmas, em sua “essência imutável” – contraposição em relação à doxástica – diferenciou-se o filósofo daqueles que não o são.
A tarefa de escolher quem governaria o Estado assemelhava-se à tarefa de distinguir o homem que busca o imutável daqueles que são incapazes, que “erram na multiplicidade dos objetos variáveis”. E em relação ao caráter filosófico, este seria o caráter dos que amam sempre a ciência, pelo mérito que esta pode conceber essa tal essência eterna a que tanto Platão se refere e tem espelho nos universais. Essa essência “não está sujeita às vissitudes da geração e da corrupção”. (192)
Neste livro, temos aqui o problema fundamental da ética, o ponto crucial da teoria da conduta moral. O que é justiça? Devemos procurar a integridade ou o poder? É melhor ser bom ou ser forte? Como é que Sócrates – isto é, Platão – enfrenta o desafio dessa teoria? A princípio, ele não a enfrenta de maneira alguma. Ostenta que justiça é uma comunhão entre indivíduos e isso provém das virtudes de sua organização social; o que, por conseguinte, pode ser melhor estudada como parte da estrutura de uma comunidade do que como uma qualidade de conduta pessoal.
Se, sugere ele, pudermos imaginar um Estado justo, estaremos em melhores condições para descrever um indivíduo justo. E Platão justifica essa tese com alicerces na investigação da própria vida do homem e a tentativa de perceber-lhe a vista, ou o modo como o homem encararia diversas situações a partir do meio em que vive. Se desde a infância e nos devidos moldes, é possível conceber o homem ideal, puro, incorruptível e distante da injustiça e do vício.
Adentrando no diálogo a respeito da questão ética, seria naturalmente propício credenciar e honrar aqueles homens mais sábios, os filósofos, para o alto comando da cidade. Questiona-se a utilidade do filósofo na sociedade, e com isso Sócrates (Platão) argumenta prolixamente que só assim são vistos pelo fato de não ocuparem o posto que lhes é devido. Os chefes deveriam ser, naturalmente, os homens mais sábios.
E quais as características inerentes a tal homem? “Um homem regrado, desprovido de avidez, baixeza, arrogância e covardia” (194) não poderia ser injusto. E vai além: “quando quiseres distinguir a alma filosófica daquela que não o é, observarás, a partir dos primeiros anos, se ela se mostra justa e branda ou feroz e intratável”. (194)
Um dos maiores problemas na questão da teoria do conhecimento, para Platão, e a mais grave acusação que se faz contra a Filosofia provém justamente daqueles que dizem-se filósofos sem, fatualmente, sê-lo. E são estas figuras que estão presentes nas mentes dos ‘inimigos’ da filosofia, quando imaginam, (como Adimanto admite no diálogo), que os filósofos não são mais que gente “perversa” e que “os mais sábios são inúteis”. (198) A partir da perversidade da grande parte entre os falsos filósofos, Sócrates se dispõe a provar que tais exemplos não se tratam, de maneira alguma, de filósofos.
A partir da noção do caráter naturalmente nobre e bom, já identificado por Sócrates, guiado pela verdade, que sob todos os aspectos e sob qualquer pena, almejar-se-ia nada mais nada menos do que a verdade em si. Usando de impostura, jamais participar-se-ia da verdadeira filosofia.
Para defender-se, Sócrates alega que “(...) o verdadeiro amigo da ciência não se detém na multidão de aspectos das coisas transitórias, das quais somente pode ter um conhecimento incerto e precário, mas vai além e busca, com vigor e aplicação, penetrar a essência de cada coisa com o elemento da sua alma a que compete fazê-lo; em seguida, tendo-se ligado e unido, por uma espécie de himeneu, à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência e a verdade, atinge o conhecimento do ser e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e a calma para libertar-se enfim das dores do parto, das quais por nenhum outro meio se poderia livrar”. (198-199)
Além de tudo, há de se perceber – segundo Sócrates, no temperamento filosófico que tendo como guia a verdade e não a hipocrisia dos sofistas – que liberta-se do coro dos vícios, que rege a injustiça. Ao contrário, a verdade acompanha pureza e a justiça, que por sua vez é seguida pela moderação.
Além de combater os falsos filósofos, enumerar-se-ia novamente as outras virtudes que compõem o temperamento filosófico, tais como a coragem, a grandeza da alma, a facilidade em aprender e a memória. Além destes ‘pré-requisitos’, afastaria também do pensar verdadeiro os atributos “da beleza, riqueza e (...) todas as vantagens desse tipo”. (200)
Na obrigação de introduzir novos costumes e crenças, o povo continuaria sendo hostil com os filósofos na medida em que afirmar-se-ia que a sociedade ideal propõe uma completa alteração em seus costumes e crenças, desde essa pronta geração, para que tenha um êxito inicial, que permitisse fidelidade às gerações futuras? No desenrolar do diálogo, conclui-se que não o será, desde que haja a compreensão.
E o plano desenrolar-se-ia “começando por considerar o Estado e os caracteres humanos de seus cidadãos um pano que (...) tentarão limpar com escrúpulo, o que não é nada fácil (...) não quererão ocupar-se de um Estado ou de um indivíduo para lhe dar apenas leis, senão quando o tiverem recebido imaculado ou tornado imaculado eles próprios”. (211) Recorre-se, portanto, à arte do convencimento, sob uma proposta de forte apelo religioso no intuito de alcançar tais objetivos.
Em relação à divisão do mundo cognoscível, teria a alma como a primeira parte desse segmento, que é obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses, seguindo um caminho que a leva a uma conclusão. No segundo segmento, a alma parte da hipótese para chegar ao princípio absoluto, sem lançar mão das imagens, como no caso anterior, e desenvolve sua análise servindo-se unicamente das idéias.
O objeto sensível, que parte das figuras, pertencem à classe do cognoscível, e para reconhecê-los a alma é obrigada a recorrer às hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que produzem sombras no segmento inferior e que, em relação a essas sombras, são tidos e considerados como claros e distintos.
O que Platão entende por segunda divisão do mundo cognoscível é aquela que a razão alcança pelo poder da dialética, considerando suas hipóteses, isto é, pontos de apoio para se elevar até o princípio universal que já não admite hipóteses. Na medida em que se atinge esse princípio, apegar-se-ia também a todas as suas conseqüências à última conclusão, “sem recorrer a nenhum dado sensível, mas somente às idéias, pelas quais procede e às quais chega”. (223)
Por conseguinte, em “A República”, Sócrates pede a Glauco que aplique as quatro operações da alma: a inteligência à seção mais elevada, o conhecimento discursivo à segunda, a fé à terceira, a imaginação à última. Platão, desta forma, sistematiza hierarquicamente superiores as operações que ele considera mais produtivas em relação à verdade.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Pensamento e Ser

O pulsar do ser
É irmão do inteligível
É ontológico e físico
Está aqui e lá, igualmente.

Somos formiguinhas ambulantes
Pensando que pensamos
E, se tudo é pensamento,
Neste momento penso que sou feliz.

A arma da vida é desarmada
A alma da vida é desalmada
O deus da vida é ateu
E o sonho da vida é somente meu.

02/setembro/2010

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A República, Livro V

A procriação dos filhos e o tipo de ensinamento ministrado aos mesmos

A problemática em relação às mulheres e aos filhos começa de forma polêmica. Adimanto exige explicações sobre como seria essa comunidade de mulheres, pede que Sócrates lhes fale sobre a procriação dos filhos e de todo o processo que envolve essa questão a ser discutida.
Urgia pensar numa solução para esta questão delicada, principalmente a despeito da pressão exercida conjuntamente por Adimanto, Glauco e agora, Trasímaco, a respeito do assunto. Era unânime que a resolução no que concerne a tais investigações trariam importantes conseqüências.
Seguindo os raciocínios anteriores, para homens de educação tal como foi descrita, não existiria de fato “posse” dos filhos e das mulheres senão pelo caminho já apresentado a priori. “Pois, de certa maneira, procuramos fazer deles os guardiões de um rebanho”. (152)
Às mulheres, caberia o mesmo tipo de educação reservado aos homens, para que também elas obtivessem desempenho satisfatório em seus serviços em outras fases da vida. Assim como aos homens, às mulheres seriam ministradas aulas de música e ginástica, além da arte da guerra, mesmo admitindo que o corpo da mulher não seria o mais adequado para o exército.
Assim como os homens sobrepujariam as mulheres em diversas funções, as mulheres superiorizariam-se aos homens em tantas outras atividades, como, por exemplo, a tecelagem, a confeitaria e a cozinha. Porém, não haveria de fato nenhuma atividade na comunidade que não pudesse ser executada absolutamente por nenhum homem ou nenhuma mulher; “ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente distribuídas pelos dois sexos e é próprio da natureza que a mulher, assim como o homem, participe de todas as atividades, ainda que em todas seja mais fraca do que o homem”. (157)
Sócrates alega que uma cidade com os melhores homens e as melhores mulheres seria invejável, além do que estabelecer-se-ia uma lei que não somente seria palpável, mas desejável para a cidade. Contudo, nos serviços militares, aplicar-se-iam às mulheres apenas os trabalhos mais leves, devido à evidente fraqueza de seus músculos.
Em “A República”, Platão assim escapa de uma problemática de forma sutil, porém uma onda ainda mais turbulenta está para chegar. E assim, Sócrates anuncia – desta vez sem maiores receios: “Todas as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão a todos: nenhuma delas habitará em particular com nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão comuns e os pais não conhecerão os seus filhos e nem estes os seus pais”.
Diante dos protestos de Glauco, Sócrates reconhece a dificuldade da execução de tal plano. Ainda assim, pensa nisso como um bem considerável. Desta forma, assegurar-se-ia a irmandade anteriormente planejada: só assim todos de fato poderiam considerar-se irmãos como numa só carne, visando a apenas o bem em comum e a harmonia do todo, sendo todos os habitantes, quase que literalmente, frutos de própria cidade e brotando de sua própria terra.
As crianças, à medida que fossem nascendo, seriam entregues aos homens e mulheres encarregados de cuidar delas, sendo dos dois sexos tal responsabilidade. Estes encarregados levariam os filhos dos indivíduos da elite a um lar comum, onde seriam confiados a amas que residem à parte. Para os filhos dos indivíduos ditos “inferiores”, e mesmo os dos outros que tivessem alguma deformidade, seriam levados a um tal “paradeiro desconhecido e secreto”. Para que o número de cidadãos do Estado permanecesse imutável, Platão chegava a admitir o infanticídio como controle de natalidade.
Cuidar-se-ia também da alimentação das crianças: levariam as mães ao lar comum, na época em que seus seios estivessem repletos de leite, e de tudo se faria para que nenhuma delas reconhecesse a sua própria prole.
Para que a cópula ocorresse no que o filósofo considerava “ a flor da idade”, o homem teria dos 25 aos 55 anos para a procriação, enquanto a mulher teria dos 20 aos 40 anos para esta tarefa. O que acontecesse fora desse parâmetro e sem a aprovação do magistério seria considerado libertinagem e injustiça, seria considerado como um fruto das trevas pelos sacerdotes e sacerdotisas.
Estas leis – aparentemente absurdas – seriam os alicerces de uma sociedade que uniria todos os cidadãos como numa só família. A comunidade das mulheres e dos filhos estabelecida entre os guerreiros representava uma comunhão de interesses que, por conseguinte, seria o maior bem da cidade.
A escravatura ser-lhes-ia permitida, desde que se escravizassem povos bárbaros. Haveria uma proposta (e a julgar pela facilidade com que é a aprovada no diálogo, seria prontamente aceita pelas outras cidades) de que os povos gregos só poderiam escravizar os não-gregos, devido ao “medo de cair na servidão dos bárbaros” (175)
         Chama atenção a solução platônica, representada pelos personagens do diálogo, para os supostos “enfermiços” sem solução, aqueles que teriam a “alma perversa por natureza”, supostamente incorrigíveis: estes seriam condenados à morte. Nesta ‘cidade perfeita’ de Platão só há espaço para os bens constituídos de corpo e alma, que enquadrem-se no perfil e no papel pré-estabelecido pelo sistema para si. Em prol da cidade, esquece-se do indivíduo.