segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A República, Livro VII

A alegoria da caverna
Para exemplificar a diferença entre a natureza humana no que concerne a instrução e a ignorância, Platão desenvolve uma alegoria influenciada por sua própria experiência pessoal.
Imagina-se uma morada subterrânea, como uma caverna, com uma entrada aberta à luz. Nela, residem homens que lá estão desde os primórdios de suas vidas, e nela permanecem acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que os que lá habitam não podem mexer-se e nem enxergar senão o que está diante deles.
A luz que chega é através de uma fogueira, acesa numa colina que se ergue por detrás deles, e entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Em paralelo à estrada, está construído um pequeno muro, de forma que ao longo desse muro podes ser avistadas as sombras de homens e animais de todas espécie e o que eles transportam: seja de pedra, madeira ou qualquer espécie de matéria. Dentre esses transeuntes, naturalmente alguns falam e outros, não.
Nessa analogia platônica à raça humana, observa-se que durante toda a vida dos prisioneiros, eles nada puderam ver além das sombras projetadas pelo fogo que passam pelo muro que fica defronte à caverna, já que estão imóveis durante todo o tempo.
Obviamente, estes habitantes tomariam por objetos reais as sombras que lhes eram informadas por suas faculdades sensoriais. Até mesmo o eco que por ventura pudesse vir da parede à caverna, seria julgado como advindo da sombra, que afinal passava diante deles.
Então, para estes homens, só atribuirão realidade às sombras dos objetos fabricados. Imagina-se, então, que se liberte um desses prisioneiros e ele seria obrigado a caminhar, voltar o pescoço e erguer os olhos para a luz. Ao fazer tais movimentos, sofrerá, e tal deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Ele não associará tais objetos tão facilmente, já que passou a vida inteira nas ‘trevas’ e a luz seria por demais forte para que a priori ele pudesse distinguir alguma coisa. Caso alguém chegasse e dissesse a esse homem que o que ele via antes não passava de vultos, e agora ele pode perceber as coisas com mais clareza, se o obrigar, à força das perguntas, a dizer o que é, provavelmente ele ficará embaraçado e as sombras de que viu a vida inteira lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora.
Num segundo exemplo, Platão supõe no caso deste mesmo homem ser arrancado à força da caverna e ser obrigado a permanecer à luz do Sol, sofrerá e queixar-se-á dessa violência a contragosto. De início, com os olhos ofuscados pelo brilho da luz, continuará não sendo capaz de distinguir as coisas do mundo. Contudo, com o hábito de ver os objetos da região superior, começará distinguir mais facilmente as próprias sombras; em seguida, as demais imagens e dos reflexos n´água, e por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá contemplar os corpos celestes à noite e a luz do dia. Por fim, será o próprio Sol o contemplado e não mais as suas imagens. Com o tempo, este homem concluiria que é o Sol que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que o próprio Sol, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com seus companheiros na caverna.
Altamente influenciada pelo exemplo de Sócrates, quando por exemplo Platão cita que o homem percebe com mais clareza “à força das perguntas” (referência à maiêutica), a alegoria tem também seu intuito político, pois o homem “lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, (...) se alegrará com a mudança e lamentará pelos que lá ficaram” (227)
A analogia com o exemplo vivido por Sócrates também pode ser percebido na continuação do que segue na alegoria: supondo que nessa gruta cavernosa se distribuíssem honras, louvores e recompensas “àqueles que se apercebessem, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, (...) e que por isso era o mais hábil em adivinhar sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos”. (227) Este homem certamente preferiria viver a mais miserável das vidas lá fora à viver das antigas ilusões das quais vivia.
Numa sutil postura política, possivelmente também análoga a Sócrates, Platão imagina ainda: E se caso esse homem adaptado ao mundo exterior voltasse à caverna e sentasse em seu antigo lugar? Ficaria com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz. E, voltando à competição com seus companheiros ainda presos às correntes, para julgar as sombras de sempre, teria grandes dificuldades para retornar à mesma aptidão que antes tinha para distinguir os tais vultos. Então os outros prisioneiros zombariam dele, dizendo que voltou com a vista estragada por ter estado lá em cima. “E se [este homem] a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?” (228)
Platão reforça que é preciso comparar o mundo que nos cerca com a vida presa na caverna e a luz do fogo que a ilumina com a luz do Sol. Assim como o prisioneiro que se liberta e descobre a verdade, também nós ansiamos por descobri-la: “Quanto à subida à região posterior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira”. (228)
Para Platão, no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e só é possível aprendê-la sem de fato concluir que ela é a causa de tudo que existe de belo em todas as coisas. No sensível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência. É preciso perceber a idéia do bem para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Voltando, no presente texto, à análise da abordagem em forma de diálogo - com Sócrates fazendo o papel de Platão - a divagação é contínua a respeito do bem e da capacidade das pessoas em conhecer o que é bom e justo. Sócrates questiona a Glauco se o estudo de todas as ciências examinadas é capaz de conduzir à descoberta das relações e do parentesco entre elas. Se há um elo que as une, aborda a respeito de um parentesco entre as ciências. Sócrates afirma categoricamente que se esta não for uma verdade, de nada terá sido útil tanta labuta.
Sócrates afirma que todos esses estudos nada mais são do que um prelúdio do vasto oceano em que ainda é preciso navegar. Porém, reconhece a dificuldade em fazer conhecer a sabedoria pessoas que são simplesmente incapazes de dar razão ou se mostrar ao menos razoáveis.
Contudo, a dialética percorre por esse campo, faz parte do inteligível, mas é imitada pelo poder da visão. A ocularidade é tida como a primeira forma de adquirir o conhecimento, e primeiro olha-se para os seres vivos, depois os astros e por fim o próprio Sol. Eis que alguém tenta, através da dialética, sem o auxílio de nenhum sentido, mas por intermédio da razão, alcançar a essência de cada coisa e não se detém antes de ter apreendido apenas pela inteligência a essência do bem, atinge o limite do inteligível.
Recorda-se do homem da caverna, desde a sua libertação das correntes, a sua conversão das sombras para as figuras ‘artificiais’ e a luz que as projeta, a sua ascensão para o Sol e daí a incapacidade em que se vê ainda de olhar para os animais, as plantas e a luz do Sol, que o força a mirar nas águas as suas imagens ‘divinas’ e as sombras de coisas reais.

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