quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Ética da Alimentação

Não costumamos pensar que o que comemos é uma questão de ética. Roubar, mentir, prejudicar pessoas - esses atos são relevantes para o caráter moral. O mesmo se aplica também, algumas pessoas poderiam dizer, ao nosso envolvimento em atividades comunitárias, nossa generosidade em relação aos que precisam de ajuda e - especialmente - nossa vida sexual. Mas comer - uma atividade que é ainda mais essencial do que o sexo e da qual todos participam - é em geral vista de forma bem diferente. Tente pensar em um político em cujas perspectivas foram prejudicadas por revelações relativas ao que ele come.(1)

Nos nossos dias, problemas como o efeito estufa estão em constante debate na mídia, porém raríssimas vezes é mencionado em alguma reportagem a sua relação com a prática da pecuária, fruto do hábito das pessoas em comerem carne. Contudo, nossos juízos éticos, como um todo, precisam estar em constante desenvolvimento. Uma mostra disso é o critério técnico atual de "morte cerebral", para decidir quando alguém está morto, a evolução da questão do aborto, e até mesmo quando decidimos desligar a máquina que mantém uma pessoa em estado vegetativo viva. É importante que mantenhamos o espírito aberto sobre estas coisas e que permaneçamos em alerta sobre o que devemos fazer e os motivos para tais decisões.

A questão da exploração dos animais é abordada por Peter Singer pelos mesmos princípios que satisfazem o próprio entendimento humano a respeito da igualdade. O que faz sentido para a igualdade entre os homens - a igual consideração de interesses - torna imperativo que alarguemos a abordagem para os animais sencientes e/ou autoconscientes. O fato de os animais não pertencerem à nossa espécie não justifica o desrespeito pelos seus interesses, assim como não justifica desconsiderar os interesses de outro ser humano baseando-se na sua nacionalidade ou cor da pele. Quando nos colocamos efetivamente no lugar dos animais, vemos que os interesses da exploração pecuária intensiva serve - obrigando-a, por exemplo, a produzir carne de porco criando estes animais em jaulas tão estreitas, que eles mal podem se mexer - não pode justificar o sofrimento dos porcos. Para nós, comer carne de porco é somente um luxo, um prazer do paladar, mas para os porcos, significa uma vida inteira de miséria, dor, tédio e privação. Isto é algo que não se pode defender de um ponto de vista que considere o interesse dos animais, segundo as atribuições do critério da igual consideração de interesses.

Singer e Mason(1) defendem que uma alimentação ética passa, principalmente, por dois alicerces básicos: não prejudicar o meio ambiente, como no caso dos pesticidas e de alimentos que precisam de um profundo apoio logístico para o transporte, jogando na atmosfera toneladas de gases nocivos e não prejudicar o modo de vida de pessoas (quaisquer seres sencientes e/ou autoconscientes). Os autores propõem uma cartilha de como alimentar-se eticamente listando os principais princípios que consideram relevantes em relação à uma vida ética no que se refere à alimentação. Tais princípios não abrangem todos os aspectos moralmente relevantes, mas podem ajudar a decidir todas as questões éticas - exceto as mais controversas:
  • Transparência: Temos o direito de saber como  nosso alimento é produzido.
Há uma frase clichê que diz mais ou menos assim: "se todos abatedouros fossem de vidro, todos seriam vegetarianos". Isso não é completamente verdade, pois algumas pessoas conseguem se acostumar com quase tudo, até mesmo perdendo a sensibilidade. Todavia, a transparência é um modo excelente de sabermos se o alimento é produzido de forma ética, evitando práticas consideradas nocivas.

  • Justiça: A produção de alimentos não deveria impor custos aos outros.
Com efeito, o preço dos alimentos deveriam refletir os custos reais de produção. Assim, os consumidores podem escolher se querem pagar o preço. A produção alimentícia não pode prejudicar, por exemplo, a qualidade de vida de populações que morem nas redondezas de uma fazenda poluidora ou simplesmente causadora de mau cheiro, fazendo com que seja impossível os moradores das redondezas viverem bem. Nesse caso, o alimento só será barato por que pessoas estão pagando parte do custo - sem desejar. Qualquer forma de produção de alimentos que não seja ambientalmente sustentável será injusta a esse respeito, uma vez que reduzirá a qualidade de vida das futuras gerações.

  • Humanidade: Impor sofrimento significativo a animais por motivos menores é errado.
Mesmo as pessoas mais radicais, que se opões a idéias de "liberação animal" ou "direitos dos animais", concordam que deveríamos evitar causar dor ou outras formas de sofrimentos aos animais. Gentileza e compaixão em relação a todos, humanos e animais, são claramente mais positivas do que a indiferença em relação ao sofrimento de um outro ser sensível.

  • Responsabilidade social: Os trabalhadores deveriam receber salários e condições de trabalho decentes.
Um tratamento minimamente decente para funcionários e fornecedores exclui a mão-de-obra infantil, o trabalho forçado e o assédio sexual. Não pode haver discriminação de qualquer espécie, e os trabalhadores devem ter o direito de reunir-se em sindicatos, se assim o desejarem. O salário dos trabalhadores deve ser suficiente para cobrir suas necessidades básicas, de seus filhos e dependentes.

  • Necessidades: Preservar a vida e a saúde justifica mais do que outros desejos.
Uma necessidade genuína de alimentar-se, para sobrevivermos e termos uma nutrição adequada, suplanta muitas coisas que de outra forma seriam erradas. A própria lei brasileira prevê absolvição da pena no caso de roubo quando o réu pode provar que era caso de sobrevivência ou morte. Por outro lado, se escolhermos um alimento específico devido a hábitos alimentares ou simplesmente por que apreciamos seu sabor, em detrimento da vida de um ser sensível, quando poderíamos nos nutrir igualmente bem fazendo uma escolha diferente, essa escolha precisa estar coerente com os padrões éticos mais estritos.


Segundo Mason e Singer(1), os alimentos do sistema industrial são os piores de todos, em todos os aspectos. Sejam eles frangos, perus, ovos de galinhas criadas em sistemas de engaiolamento, vitela (carne de boi recém-nascido), porco, presunto e bacon, carne bovina do sistema de produção intensiva e, em menor grau, leite e laticínios, peixes criados em cativeiro e peixes selvagens. Em relação aos invertebrados (siris, caranguejos, lulas, polvos, camarões, lagostas, ostras, mariscos e mexilhões) os maiores problemas éticos são a sustentabilidade ambiental e a possibilidade de evitar o sofrimento injustificado.

Não obstante, talvez o drama maior em relação à sustentabilidade ambiental esteja relacionado aos animais marinhos, já que são tidos como alimentos saudáveis e há uma falsa idéia de que, pelo fato de o planeta possuir 3/4 de água, eles serão sempre imunes às intempéries da extinção. Na Semana Santa, por exemplo, a celebração da morte e ressurreição de Jesus divide o espaço com o boom do comércio e consumo de carne de peixes. O feriadão em questão, em especial a Sexta-Feira Santa, é a época em que mais se comercializa e se consome esse tipo de carne no ano. As feiras, peixarias e supermercados de todo Brasil lotam-se com milhões e milhões de peixes e uma multidão os compra para comê-los. A sociedade curte muito e a mídia incentiva, mas, aos olhos da natureza e da ética do respeito à vida animal, tais comportamentos se fazem perigosos e condenáveis.

A imprensa, alienando a população de todos os problemas éticos e ambientais causados pela pesca, mostra com satisfação a prosperidade temporária dos vendedores de peixes mortos, ignorando e/ou omitindo completamente que é essa mesma fartura que vem causando um dramático declínio na população de grande parte das espécies "pescáveis", se não todas, em todos os mares e oceanos do planeta.

As notícias sobre a queda e extinção local de muitas espécies de peixes multiplicam-se, mas, de forma quase irônica, as relacionadas ao comércio e consumo de "pescado", sempre acríticas, ganham destaque, muitas vezes nos mesmíssimos jornais, telejornais ou sites, durante o feriado cristão. Notas sobre preço, disponibilidade e demanda e receitas culinárias imperam nos dias anteriores à Sexta-Feira Santa, diz em que a carne vermelha é vedada da mesa dos cristãos - por motivos meramente religiosos, nada relacionados com ética, compaixão ou não-violência, e os fatos de que os peixes agonizam muito em asfixia depois de retirados da água e poderiam ter suas vidas poupadas e respeitadas graças à existência do vegetarianismo simplesmente inexistem perante o olhar dessa mídia.



Com todo esse estímulo da TV, dos jornais e dos portais on line e embalado pela tradição, o povo se esbalda com a carne aquática no feriado. Ignora-se completamente que o costume cristão vem ajudando muito, para não dizer fundamentalmente, para a já citada crise populacional dos peixes nas vastas águas da Terra. Para se ter uma idéia dessa que se mostra como uma calamidade ecológica, alguns dados:

  • Em 2008, a Organização Não-Governamental WWF anunciou que a pesca em grande escala está ameaçando nada menos que 75% da população de peixes no mundo;
  • Em 2009, o Portal Ecodebate, meio de comunicação relacionado à cidadania e às causas ambientais, reportou que na faixa territorial oceânica brasileira, 80% das espécies mais procuradas por pescadores estão ameaçadas de extinção por causa da sobrepesca e por causa da pesca por redes de arrasto. Segundo o mesmo portal, 80% dos bancos de pesca estão em declínio ou esgotados;
  • Em fevereiro de 2010, o portal Terra anunciou que o planeta Terra é incapaz de acompanhar o ritmo atual de consumo de carnes: a pesca está hoje num ritmo duas a três vezes superior à capacidade de regeneração das populações aquáticas das águas do planeta. Permanecendo esse ritmo, todas as espécies "pescáveis" terão desaparecido em 2050. Esta mesma reportagem anuncia que a população de atum-azul diminuiu 10% em relação a meados do século XX no Oceano Atlântico e no Mar Mediterrâneo. Na costa da Escandinávia, já foi extinta. Nas fazendas de aqüicultura da Europa, já caiu 25% em apenas um ano;
  • Segundo o Greenpeace, um terço da captura mundial de peixe é desperdiçada na produção de ração animal, de modo que pesca e pecuária estão intimamente interligadas: rações preparadas a partir de peixes representam 37% do total de peixes retirados anualmente dos oceanos; 90% dessa porcentagem são transformados em óleo ou farinha de peixe. Dessa farinha e óleo, 46% são utilizados como alimento na aqüicultura de peixes e outros 46% são destinados para ração da pecuária suína e aviária;
  • De acordo com o Portal Ambiente Brasil, das 30 espécies de tubarões pelágicos, que vivem em alto-mar, 11 correm risco de extinção por causa da pesca que captura tubarões inteiros, por suas barbatanas. Nesse caso, os tubarões são abandonados à morte depois de mutilados;
  • De acordo com a Scientific American, em 2007, a pesca profunda com redes de arrasto é capaz de levas embora, junto com os animais "pescáveis", até quatro toneladas de corais, o que vem contribuindo para a ameaça mundial que os recifes de coral estão sofrendo.
Também merece ser considerado o sofrimento desses animais quando são içados da água. Basta ver a força e o frenesi com que o peixe se debate depois de capturado, mais o movimento de sua boca quando já perdeu suas forças. Sua agonia é algo escancarado, visível a todos, mas é tratada com muita naturalidade e insensibilidade pelo pescador e totalmente ignorada por quem come esses bichos.


Os animais da pecuária intensiva, além de uma morte extremamente cruel e dolorosa, levam uma vida de privações e extremamente sofrida. Alimentos tidos como requintados, como o foie-gras (em português, seria algo como "fígado gordo", pois as aves são alimentadas à força, muitas vezes morrendo no próprio vômito quando não ficam doentes antes), ou a carne de vitelo (que captura o bezerro recém-nascido e dão-no uma dieta precária em ferro, para que fiquem anêmicos e a carne fique branquinha, suas cabeças são presas para que não se mova e a carne fique mais macia, e também para que ele não tente lamber as grades no desespero por ferro ou tente alimentar-se da própria urina) são as mais execráveis formas de condenação à morte de seres inocentes.

A humanidade, ao contrário de épocas remotas, já dispõe de tecnologia e do desenvolvimento da Filosofia Prática para que se tornem desnecessários quaisquer formas de sofrimento evitável. A morte de um ser único, sensível, capaz de relacionar-se entre membros de sua espécie e até mesmo com outras espécies, capaz de sentir dor e prazer, munido de memória e aspirações, não pode ser justificável no atual estágio de desenvolvimento intelectual e tecnológico do homem. Em pleno século XXI, nós temos como evitar esse sofrimento intenso: o desenvolvimento da nutrição vegetariana, com sua cada vez mais comprovada sustentabilidade nutricional, que torna o consumo de qualquer tipo de carne totalmente dispensável e nos permite respeitar o direito à vida dos animais e evitar que eles sofram em condições pífias de sobrevivência. A priori, todos os animais sencientes (exceto poríferos), têm o direito à vida e ao respeito ao seu consciente interesse de viver, e sua morte para consumo alimentar pode ser evitada com a adoção da alimentação vegetariana.

A alienação ambiental, a ética seletiva e o desamor perante formas sensíveis de vida são velhos costumes na semana santificada por uma religião que ironicamente prega a caridade e o amor ao próximo. Nesta época são praxe os pecados contra a vida e a natureza. E a cristandade, apoiada pela tradição e pela comunicação de massa, caminha tornando a biosfera cada vez mais desequilibrada e escassa de fauna causando sofrimento e morte despreocupadamente a bilhões de animais. Enfim, tornando o mundo pior.

(1)SINGER, Peter. MASON, James. A Ética da Alimentação. São Paulo: Elsevier, 2006.



segunda-feira, 8 de abril de 2013

A caminho da República Teocrática Brasileira

  O ESTADO LAICO JÁ MORREU (ou nunca existiu!)

Projeto de Emenda Constitucional 99/2011

Ementa:
"Acrescenta ao art. 103, da Constituição Federal, o inciso X, que dispõe sobre a capacidade postulatória das Associações Religiosas para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição Federal."

Voto do Relator:

"Há temas e questões que somente as lideranças religiosas podem focalizar tendo em vista as sensibilidades das mesmas para determinados assuntos que informam de maneira básica a prática do direito entre nós. A interpretação de muitas leis necessita da contribuição dos setores religiosos"

27/03/2013 - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC ) - 10:00 Reunião Deliberativa Ordinária - Aprovado o Parecer.
 PEC 99/2011 - Projetos de Lei e Outras Proposições - Câmara dos Deputados

É incrível que no Brasil ainda precisemos lutar por direitos tão básicos. Este também é o tema da nova enquete. Você é a favor da laicidade do Estado, como ocorre no Uruguai, ou a favor de um vínculo cada vez mais próximo do Estado brasileiro com as Igrejas e as mudanças da Constituição nesse aspecto? Vote ao lado.

As desrazões de Azevedo, Garcia e Sheherazade



* Por George Fernandes, professor de Filosofia do Colégio Atual e da FAFICA formado pela UFPE.

AS DESRAZÕES DE AZEVEDO, GARCIA E SHEHERAZADE
Ou porque uma opinião não é só uma opinião

Perdão, mea culpa.

Milhares de compartilhamentos. Centenas de elogios. Hipnotizados por uma retórica que parece reafirmar o óbvio, como não concordar com aqueles que defendem o nosso sagrado direito de expressão? É constitucional, afirmam. É constitucional, repetimos. E capitulamos juntos: violentos são vocês, os que não admitem o contraditório. Está feita a inversão: Afinal, que mal há em uma simples opinião? Os equivocados somos nós, os que tentam cerceá-la.

Há como negar? Pausa dramática. Sim, há.

É só uma opinião, caramba!

Quando alguém que diz “é só uma opinião”, fico sempre com vontade de perguntar o que diabos isso significa. Não o significado de opinião, claro, mas do adverbio ali presente. Porque para mim não existe isso de “é só uma opinião”. Uma opinião, no sentido lato, é sempre uma tomada de posição em relação a algo. Ao emitir uma opinião, dizemos aos outros como compreendemos e avaliamos determinado assunto. Portanto, não é algo de somenos. As opiniões nos definem, delineiam a nossa posição num espectro ideológico e ajuda-nos a definir com quem temos maior afinidade ou não. Não há opiniões inocentes. No máximo, opiniões ingênuas.

Há quem diga “é só uma opinião” como quem diz “não o leve a sério, é apenas um ponto de vista”. Tudo bem. De fato, em sentido restrito agora, uma opinião não é outra coisa senão uma crença que não passou pelo crivo do senso crítico. Porém, isso não a inocenta. Não a torna menos perigosa ou menos influente. Quem opina sobre as relações de gênero e afirma que as mulheres devem ser mantidas sob o comando dos homens, pode até estar repisando certos clichês sem se dar conta disso, entretanto essa “inconsciência” não torna ninguém menos sexista ou misógino.

Isso é óbvio? Não para nossa imprensa. Para ela, e para tantas outras pessoas, uma opinião racista, por exemplo, não torna ninguém racista. Aliás, para certos setores de nossa imprensa uma opinião é só uma opinião. Não expressa uma determinada leitura de mundo, não faz parte do embate ideológico travado constantemente nas redes sociais, não diz nada sobre como compreendo determinados temas e me posiciono em relação a eles. Uma opinião não é nada. Aliás, perdoem-me, ela é algo sim: uma opinião. Palavra vazia, inocente, boba, higiênica porque limpa de toda contaminação ideológica. Uma opinião? Ah, seus implicantes! Uma opinião é só uma opinião...

E a liberdade, tio?

Fica como está. Uma das estratégias mais sacanas dos formadores de opinião é nos acusar de tentar cercear a liberdade de expressão do deputado pastor. Mentira! Ninguém está tentando calar o deputado. O embate aqui é travado em outro nível. Assim como ele tem o direito de opinar sobre o que quer que seja, nós temos o direito de considerá-lo inapto para o cargo que atualmente exerce. E é em função de suas opiniões sim. Propositadamente confundem as críticas que fazemos aos pronunciamentos do pastor com cerceamento à liberdade. É um arenque vermelho: Ao invés de rebater as críticas que são feitas ao pastor por assumir um cargo que exige um perfil diferente daquele que ele tem apresentado, conduzem o debate para um plano que não possui relação nenhuma com o que está sendo discutido. Ninguém anda a dizer “Calemos o Feliciano!”. O grito de ordem é outro e não tem nada a ver com impedir alguém de opinar sobre o que quer que seja.

Santa Falácia, rogai por nós que recorremos a vós.

Alexandre Garcia rezou para a mesma santa perante a qual se ajoelharam Reinaldo Azevedo e Rachel Sheherazade: A Santa Falácia. O trio, de forma pra lá de suspeita, escamoteia diversas declarações do Marco Feliciano e tenta conduzir nossa atenção apenas para suas declarações sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Ora, isolada das demais declarações, essa declaração em especial, por si só, não nos permite, de fato, chamar o pastor de homofóbico (no sentido forte do termo). O problema, e todos nós sabemos disso, é que essa não foi a única declaração dele sobre o assunto. Portanto, os três incorrem numa falácia conhecida como "falácia da omissão de provas". Ou seja, excluíram de seus argumentos dados importantes que uma vez levados em consideração, mudariam a conclusão do argumento ou o invalidariam.

Má fé? Maybe.

Alexandre ainda incorre em outra falácia: a da falsa analogia. Estou cansado agora e não vou tentar desmontá-la, mas o processo é simples: basta alguém mostrar que as comparações feitas por ele entre as frases “A América Latina é maldita pela corrupção” e a frase “Os africanos são amaldiçoados”, divergem de tal modo que a analogia torna-se inviável. Não é difícil. Uma dica: podemos começar pela representação social do continente africano, que tal?

Crime de opinião?

Pois é! Isso não existe. Mas caro sinhô, você nunca leu Austin? Nunca entrou em contato com a Análise do Discurso? Nunca leu Foucault não, meu filho? É preciso alguém tascar um lâmpada na cara de um homem homoeroticamente orientado para ser tachado de homofóbico e heterossexista? Só são racistas aqueles que colocam uma placa no seu estabelecimento comercial avisando que ali não entram negros? Gente, que ótimo! Se os discursos são só discursos, então definitivamente vivemos no melhor dos mundos.

Raquel, a Sheherazade

Fia, presta atenção:  O pastor não é só uma autoridade parlamentar, é uma autoridade religiosa também. Ou seja, sua palavra tem o poder de influenciar e modificar não somente as crenças, mas igualmente o comportamento das pessoas. A senhoura até pode defender o direito dele se pronunciar. Isso eu também defendo. Todos nós, aliás. O que não dá para aceitar é ouvir alguém supostamente inteligente amenizando as declarações do Feliciano porque, lá vamos nós mais uma vez, são apenas opiniões pessoais. O direito que ele tem de falar o que der na telha, temos nós de criticá-lo e de achar, sim senhoura, que por suas opiniões ele não tem o perfil para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

Não é perseguição não, fia. É exigência de coerência. E não vale só para ele não! Vale para todos que estão lá, do Blairo Maggi ao José Genoíno. A questão nunca foi religiosa, como vocês insistem em colocar. Estivesse um Dom Helder Câmara lá, estaríamos provavelmente contentes.

Sabe, nós respeitamos a liberdade de crença. Tanto que você pode até continuar queimando seus incensos no altar de Santa Falácia. Já nós... Bem, nós continuaremos a acender nossas velas no altar de São Bom Senso. Sabe cumé, né? Essa é a nossa escolha, a nossa (assumida) opinião.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A alfabetização científico-filosófica e a doutrinação das crianças



Uma das piores violências culturais que uma pessoa pode sofrer é, muitas vezes, involuntária. Trata-se da doutrinação mística/religiosa por parte de familiares ante a uma criança que ainda não tem a distinção cognitiva de pensar por si só. Além de ser eticamente condenável, é um abuso previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, onde toda a criança e adolescente tem direito à liberdade de crença (e, conseqüentemente, de descrença) e de escolher, quando o juízo próprio permitir, o seu próprio caminho.

As crianças se tornam, em grande parte, adultos que não tiveram a opção de observar o mundo com seus próprios olhos. Muitas vezes, logo ao nascer, o bebê ocidental já tem um crucifixo no alto da parede de seu quarto, dando aos visitantes claros sinais de qual doutrina o pequeno irá tirar sua visão de mundo. Isso não é muito diferente nas outras culturas, cada qual com seu deus ou deuses, haja vista que a religião é um aspecto fortemente ligado à cultura de seu povo. Ainda que os pais sejam de determinada corrente religiosa, é inadmissível, do ponto de vista moral, considerar razoável que seus filhos tenham sua liberdade tolhida desde a mais tenra infância. Dentro da malha intelectiva e cultural dos pais, aliadas à própria experiência de vida, pode-se considerar que tal imoralidade seja algo involuntário - há uma forte crença, do qual eles também são vítimas num ciclo vicioso, de que estão elevando os filhos à salvação - porém ainda assim imoral. Uma involuntariedade que muitas vezes é capaz de tolher e amputar o livre pensamento dos adultos do futuro, que deveriam ter a iniciativa própria de escolher seu próprio sistema de crenças ou até mesmo o abandono de todas elas, mediante a alfabetização científico-filosófica.

Quando as pessoas são alfabetizadas cientificamente e filosoficamente, a crença torna-se uma opção. Isso não quer dizer que todos que tenham uma sólida formação científica e filosófica abandonam todos os sistemas de crenças, é bom frisar. Apenas que a figura de deus e dos dogmas tornam-se apenas contingentes. A necessidade absoluta de uma crença mística qualquer só se torna fundamental quando não há outra saída razoável: o mundo é incrível e no não-entendimento das coisas, busca-se explicações mirabolantes no intuito de acalmar a alma. A religião cumpre esse papel mantendo as pessoas na ignorância - que todos temos - com o diferencial de que nesse caso a própria ignorância e a acomodação em explicações místicas sem sentido trate-se de uma virtude. Sair do nível místico ao investigativo pode significar um longo processo, mas é um amadurecimento extremamente compensador.

Não está sendo proposto aqui um caminho infalível ou uma verdade incontestável a respeito do que se deva crer ou não-crer. O que está sendo exposto é a defesa e o respeito ao livre pensamento e crença de todas as crianças, fazendo-se valer o Estatuto supracitado. Por mais que a visão mágica do mundo seja prazerosa para alguém, este mesmo alguém não tem o direito de julgar que seria o mesmo para outro - isso é um atentado à individualidade. Para o outro, o entendimento das coisas como elas são de fato podem fazer muito mais sentido - e ser igualmente maravilhoso.