sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ética e Filosofia Clínica



A Ética, em geral, é tida como a parte da Filosofia dedicada aos estudos dos valores morais e princípios ideais do comportamento humano. É a disciplina crítico-normativa que estuda as normas do comportamento humano, mediante as quais o homem tende a realizar na prática atos identificados com o bem e a justeza. Em geral, relacionamos a Ética com a virtude e o bom caratismo. A distinção do que é bom ou mau, do que é correto ou incorreto, dá-se pelo conceber Ético que envolve os costumes do tempo daquele que julga tais valores que, por sua vez, também são mutáveis através dos tempos.

É papel da Filosofia permanecer em vigília a respeito dos dilemas éticos já que, novas tecnologias estão sempre nos pondo perspectivas diferentes a respeito do que possa ser moralmente válido. Um exemplo disso é o conceito de morte cerebral, tão utilizado nos nossos dias devido à capacidade de estendermos uma vida em estado miserável e/ou vegetativo quase que indefinidamente, levantando questões sobre a utilidade da eutanásia como um bem tanto para aqueles que sofrem em leitos de hospitais e os que sequer sofrem por não possuir mais quaisquer capacidades para tal, tampouco para sentir prazeres. Todos os temas éticos do nosso tempo, enfim, ganharam novas conotações no nosso tempo; não apenas a eutanásia em benefício dos que sofrem mas também temas como aborto, obrigação dos ricos para com os pobres, as condições de igualdade, o especismo, a dessacralização da vida humana, entre outros.

Na Filosofia Clínica, conflitos e paradoxos podem ser elementos que assegurem a Ética. O paradoxo, nesse caso, é contingente, mas pode ser que assegure o equilíbrio numa ética da alteridade. Em suma, o contraditório nesse caso não é necessariamente excludente. A ética aparece no fazer filosófico de maneira intrínseca: o (verdadeiro) filósofo sempre vai ter a postura ética de dizer: 'eu posso estar equivocado'. Na Filosofia Clínica, o entendimento desse aspecto é fundamental para adentrar no mundo do partilhante a partir da sua identidade - que não seria, nesse caso, o primeiro olhar sobre o partilhante; isso poderá acontecer depois da investigação de sua historicidade. Em Filosofia Clínica, vamos chamar de "Identidade de Estrutura do Pensamento (EP)", que não é uma primeira impressão, mas fruto deste mergulho posterior no que nos foi apresentado através dos relatos da historicidade ou, se for o caso, de outra maneira de captar esta última. O fato de que o filósofo clínico sabe que "pode estar errado" em seus pré-juízos permite-o adentrar neste novo universo do outro - e isso é uma postura fundamentalmente ética. A EP é justamente a identidade de alguém, o "eu" em seu registro histórico, no que se conclui que o terapeuta nunca saberia da identidade de alguém fora da história do partilhante - narrada por ele mesmo.

Na ética da alteridade, a análise é um recurso útil, mas nunca vai substituir o outro. Verdade analítica não é a autenticidade do outro, mas o fragmento morto do outro - e isso encontramos em Bergson, para o qual nós não temos o outro, mas a memória em recorte dele. Então, quando o filósofo clínico analisa o partilhante, disseca-o, "mata-o", "corta-o" em pedaços e está tudo bem, desde que ele saiba que isto é sua própria análise e não o outro com exclusividade. O outro não é a estrutura de pensamento que temos dele mediante análise. Esta é apenas - e com grande importância - um recurso didático e terapêutico importante de aproximação do outro. Para Lévinas, só temos boa compreensão do outro quando temos ética de cuidado, e não quando analisamos o outro.

Na autonomia, temos a postura ética intrínseca ao desalienarmo-nos das coisas - e todo ato pessoal é sabidamente um ato responsável perante o mundo. É uma condição fundamental ao terapeuta, já que, segundo Will Goya, "a alienação nega a alteridade". 

domingo, 23 de junho de 2013

O discurso dos sonhos da presidente após os protestos



Ao final do discurso da presidente Dilma, o sentimento em mim e em milhares (milhões?) de pessoas era de frustração. Depois de tanta revolta no país inteiro e até no exterior, com pessoas mostrando sua profunda insatisfação pela maneira como a política é conduzida no Brasil, a presidente desperdiçou uma excelente oportunidade de ter o povo ao seu lado, acalmar as manifestações e encaminhar o país a mudanças reais, efetivas. Era a oportunidade ideal para abrir mão do jogo político parasita que tanto assola nosso Estado, com negociações de cargos e todo tipo de prática infrutífera em nome do poder. Ao invés de tentar apenas colocar panos quentes nas manifestações, além de uma retórica completamente vazia, poderia ter anunciado mudanças drásticas na maneira de se fazer política no Brasil.

Fiquei imaginando, então, como seria o "discurso dos sonhos", aquele que faria com que muitos se sentissem agraciados e confortados com o sentimento real de que "agora vai!" ao invés de ouvir tanto "blá blá blá" de retórica vazia, que gerou tanta frustração naqueles que tinham algum senso crítico e expectativa de que, através dos protestos, o script pudesse ser diferente. Não sei quem redigiu o discurso da presidente, se ela própria ou sua assessoria, pois a câmera da Record flagrou um trecho da reunião marcada para discutir as manifestações em que a presidente sequer estava presente. Mas como seria o discurso dos sonhos? Vamos lá... Em itálico, o discurso oficial. Em negrito, o discurso dos sonhos.

"Todos nós, brasileiras e brasileiros, estamos acompanhando, com muita atenção, as manifestações que ocorrem no país. Elas mostram a força de nossa democracia e o desejo da juventude de fazer o Brasil avançar."

Esse trecho não careceria de modificação, é apenas introdutório. O único erro é que considera que apenas a "juventude" deseja ardentemente por mudanças, mas vamos lá...

"Se aproveitarmos bem o impulso desta nova energia política, poderemos fazer, melhor e mais rápido, muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações políticas e econômicas. Mas, se deixarmos que a violência nos faça perder o rumo, estaremos não apenas desperdiçando uma grande oportunidade histórica, como também correndo o risco de colocar muita coisa a perder."

"Gostaria de agradecer ao povo que está indignado, seja em casa ou os milhões que foram às ruas do Brasil. Essa é a oportunidade ideal para que eu, como presidente, possa pressionar meus colegas para algumas mudanças, bem como tomar as decisões necessárias que cabem tão-somente à mim, como por exemplo a imediata suspensão do bolsa-copa dos meus ministros, para provar e mostrar a vocês que meu compromisso com a seriedade no gasto público, a partir de agora, é real. Suas vozes foram ouvidas"

"Como presidenta, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem, indispensáveis para a democracia.
O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático. E também está lutando muito para se tornar um país mais justo. Não foi fácil chegar onde chegamos, como também não é fácil chegar onde desejam muitos dos que foram às ruas. Só tornaremos isso realidade se fortalecermos a democracia – o poder cidadão e os poderes da República. Os manifestantes têm o direito e a liberdade de questionar e criticar tudo, de propor e exigir mudanças, de lutar por mais qualidade de vida, de defender com paixão suas ideias e propostas, mas precisam fazer isso de forma pacífica e ordeira."

"Como presidente, eu tenho a obrigação tanto de ouvir a voz das ruas, como dialogar com todos os segmentos, mas tudo dentro dos primados da lei e da ordem, indispensáveis para a democracia.
O Brasil lutou muito para se tornar um país democrático. E também está lutando muito para se tornar um país mais justo. Não foi fácil chegar onde chegamos, porém o movimento das ruas tornará mais fácil nosso objetivo em comum, a partir de já, que é a reforma política. Os vereadores, que em suas cidades aumentam seus próprios salários sucessivamente, saberão que não há mais uma população passiva que a tudo aceita. Ela acordou e vai exigir dos governantes a moralidade e a seriedade que lhes cabe nos cargos que ostentam. Peço perdão àqueles manifestantes que foram às ruas em paz e foram recebidos por uma polícia, em alguns casos, truculenta e mal preparada para lidar com manifestações sociais. Vamos conversar com todos os responsáveis pela segurança nos Estados para que possamos ter policiais capacitados e treinados para servir à população"
 
"O governo e a sociedade não podem aceitar que uma minoria violenta e autoritária destrua o patrimônio público e privado, ataque templos, incendeie carros, apedreje ônibus e tente levar o caos aos nossos principais centros urbanos. Essa violência, promovida por uma pequena minoria, não pode manchar um movimento pacífico e democrático. Não podemos conviver com essa violência que envergonha o Brasil. Todas as instituições e os órgãos da Segurança Pública têm o dever de coibir, dentro dos limites da lei, toda forma de violência e vandalismo."

"Mais uma vez: suas vozes foram ouvidas. Posso lhes garantir que a PEC-37 jamais será aprovada por mim e estou aproveitando esse momento histórico do Brasil para fazer uma declaração: exijo, assim como o povo nas ruas, a imediata renúncia ao cargo dos senhores Renan Calheiros, presidente do Senado Federal, Pastor Deputado Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, José Genoíno e João Paulo Cunha, titulares  da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Prometo-lhes, inclusive, que não haverá mais troca de favores entre partidos em nome de uma suposta governabilidade, e sei que contarei com o apoio de vocês para isso. Caso os referidos senhores não se afastem de seus cargos, eu que me afastarei, pois não adianta tentar governar num Estado que oprima o cidadão e que a corrupção seja tolerada. Basta. Tenho certeza que vamos, juntos, fazer a pressão necessária para que todos os envolvidos em corrupção larguem seus cargos e vamos mostrar ao mundo a seriedade da nova política brasileira. Vamos apurar todos os casos de corrupção e os mensaleiros serão devidamente punidos"

"Com equilíbrio e serenidade, porém, com firmeza, vamos continuar garantindo o direito e a liberdade de todos. Asseguro a vocês: vamos manter a ordem.
Brasileiras e brasileiros,
As manifestações dessa semana trouxeram importantes lições: as tarifas baixaram e as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional. Temos que aproveitar o vigor destas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira.
A minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse ouvida. Muitos foram perseguidos, torturados e morreram por isso. A voz das ruas precisa ser ouvida e respeitada, e ela não pode ser confundida com o barulho e a truculência de alguns arruaceiros. Sou a presidenta de todos os brasileiros, dos que se manifestam e dos que não se manifestam. A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem. Disso eu não abro mão."

"Brasileiras e brasileiros, estou orgulhosa de vocês. A imensa maioria de vocês, que protestaram pacificamente, tem todas as razões para pedir moralidade no nosso modo de fazer política. Algumas conquistas já são evidentes, como a diminuição dos preços das passagens por todo o país. Mas isso ainda não é tudo. Há muito a ser conquistado. Assim como pedem as reivindicações, vou me reunir com todos os líderes do meu partido para que possamos transformar a corrupção em crime hediondo e o fim do foro privilegiado, até por que o mesmo é um ultraje ao artigo quinto de nossa Constituição. Nenhum desvio público será mais tolerado. Vamos investigar os indícios de superfaturamento nas obras da Copa do Mundo e, para isso, vou conversar com meu partido e a base aliada para a formação de uma CPI. Continuem cobrando, pois a força está com vocês. Não permitam mais que corruptos permaneçam impunes. Não queremos mais uma nação de privilégios, vamos valorizar sempre a igual consideração a todos os cidadãos, seja ele presidente do Senado ou motorista de ônibus."

"Sou a presidenta de todos os brasileiros, dos que se manifestam e dos que não se manifestam. A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos. Todos me conhecem. Disso eu não abro mão. Esta mensagem exige serviços públicos de mais qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a preço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as instituições e os governos devem mudar. Irei conversar, nos próximos dias, com os chefes dos outros poderes para somarmos esforços. Vou convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país para um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos."

Perfeito, esse trecho eu não alteraria.

"O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS."

"O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação. Mas isso só não basta, não podemos ter nosso desenvolvimento dependente exclusivamente do petróleo, por isso anuncio também que teremos a Educação como uma das grandes prioridades, destinando 10% do PIB para este fim, valorizando também cursos técnicos para a qualificação da massa trabalhadora, já que muitas vezes temos empregos disponíveis e pouca mão de obra qualificada para preenchê-los. Terceiro, valorizar mais os profissionais da Saúde e vetar o "ato médico", que limita a atuação de diversos desses profissionais. Qualificando mais e melhor, em conjunto com o investimento maciço em Educação e Ciência, formaremos nossos próprios profissionais e desenvolveremos nossa própria tecnologia, sem ficarmos dependentes de outros países para o nosso real desenvolvimento"

"Anuncio que vou receber os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares. Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro e de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente."

Perfeito, não alteraria.

"Brasileiras e brasileiros,
Precisamos oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar.
Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular. É um equívoco achar que qualquer país possa prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo democrático. Temos de fazer um esforço para que o cidadão tenha mecanismos de controle mais abrangentes sobre os seus representantes."

"Brasileiras e brasileiros,
Precisamos oxigenar o nosso sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar. Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular. É um absurdo e inaceitável que o custo do Brasil com todos os parlamentares do país seja de mais de 11 bilhões de reais anuais, e se contarmos com todos os privilégios, verbas de gabinete, verbas indenizatórias e benefícios, esse custo ultrapassa os 145 bilhões, valor maior do que nosso atual investimento em Educação e Saúde somados. A reforma política que me empenharei em começar contemplará esse problema, e para isso conto com a pressão de vocês e com a minha base aliada, com a qual vou conversar sistematicamente até conquistarmos nossos objetivos pelo bem da Pátria. Com o dinheiro que economizaremos, poderemos diminuir significativamente a atual carga tributária, que é um ultraje. Hoje um trabalhador trabalha 4 meses do ano apenas para sustentar o Estado, que não lhe retribui com serviços à altura. Com essa reforma política, isso vai mudar"

"Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes de combate à corrupção. A Lei de Acesso à Informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos os poderes da República e instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento do cidadão para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. Aliás, a melhor forma de combater a corrupção é com transparência e rigor."

Sem modificações.

"Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas é fruto de financiamento que será devidamente pago pelas empresas e os governos que estão explorando estes estádios. Jamais permitiria que esses recursos saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários como a Saúde e a Educação. Na realidade, nós ampliamos bastante os gastos com Saúde e Educação, e vamos ampliar cada vez mais. Confio que o Congresso Nacional aprovará o projeto que apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente com a Educação."

"Em relação à Copa, confesso que erramos ao despejar tanto dinheiro público nas obras, como por exemplo no Estádio do Corinthians, em São Paulo. Contudo, o investimento não foi só do Estado e, além do mais, é um caminho sem volta: os estádios já estão prontos ou quase prontos, e não faria sentido o país, a essa altura, abdicar de tudo que já foi feito até aqui. Contudo, asseguro-lhes: vou pressionar, junto ao meu partido, para que haja uma investigação rigorosa sobre supostos superfaturamentos em algumas obras, pois é um dinheiro que deveria ser investido em Saúde e Educação, que a partir de agora, serão prioridades. Confio que o Congresso Nacional aprovará o projeto que apresentei para que todos os royalties do petróleo sejam gastos exclusivamente com a Educação, além de fazer a parte do Governo Federal, destinando, assim como já mencionei, 10% do nosso PIB a esta causa. Esta já é, de longe, a Copa mais cara da História e não é justo que o Brasil tenha esse ônus e que não tenha direito a pelo menos 25% do lucro da FIFA, que planeja levar 100% dos aproximadamente 4 bilhões de reais que deve ter de lucro com a Copa no Brasil. Nosso representante para a Copa, Aldo Rebelo, já foi notificado por mim para que comecemos as nossas negociações com a FIFA a esse respeito. Ao contrário do que tem sido dito nas redes sociais, o Brasil é um país soberano e não pode ser subjugado por uma organização esportiva. Quem manda no nosso país somos nós."

 
"Não posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que recebemos deles. Respeito, carinho e alegria, é assim que devemos tratar os nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência pacífica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa.
Minhas amigas e meus amigos,
Eu quero repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança. Eu quero dizer a vocês que foram pacificamente às ruas: eu estou ouvindo vocês! E não vou transigir com a violência e a arruaça.
Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país.
Boa noite!"

Sem alterações. Sejamos francos: se tivesse sido essa a declaração da presidente e se de fato a presidência estivesse comprometida com as mudanças prometidas nos discursos, será que as pessoas voltariam às ruas? Não é tão difícil assim, não se falou nenhum absurdo nesse discurso hipotético. O problema é que o discurso vazio e retórico só contribui para que nos sintamos ainda mais frustrados em relação a uma perspectiva real de melhora na política de nosso país...

Fonte do pronunciamento: http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/pronunciamento-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-em-cadeia-nacional-de-radio-e-tv

terça-feira, 21 de maio de 2013

Resistência ao tempo

* Por Ângelo Monteiro, filósofo, poeta e ensaísta pernambucano.


Como a ninguém é possível escapar às injunções do tempo, muitos preferem mascará-lo, quer pelas diversas técnicas de remoçamento, quer por meio de renovadas operações plásticas: já que é menos difícil conviver com um tempo mascarado do que com a fisionomia que ele vai assumindo a cada momento, ao longo de sua marcha entre os homens e as coisas. Embora disponhamos da memória para preservar a presença de tudo o que amamos, ou que supomos ter possuído um dia, nunca nos abandona a ilusão de afastá-lo para além de nós, sobretudo quando a juventude ensaia seus primeiros sinais de despedida.
O mesmo tempo que nos permite alcançar as metas almejadas, aponta para os limites daquilo que nos chegou às mãos. Nas diferentes ocasiões em que tentamos medi-lo - antes com legendárias ampulhetas, hoje com sofisticados relógios - nos recusamos a compreender que dele, e apenas dele, depende a medida do que lateja de vitalidade, ou adquire uma forma inanimada neste mundo. Por mais que busquemos capturá-lo, ele com frequência nos surpreende, sem nos darmos conta de que estamos permanentemente sujeitos aos seus caprichos ou entregues à sua completa disposição.

A dialética entre o homem e o tempo, ao conferir um sentido à história humana, não consegue nos dar acesso jamais a essa outra dialética que não cessa de nos assediar e perseguir, dentro e fora das fronteiras individuais, no sempre recomeçado jogo do eterno com o passageiro. As mudanças costumam chegar abruptamente, antes dos acontecimentos cumprirem seu necessário curso, e, outras vezes, aquilo que estava a caminho toma um rumo totalmente contrário à sua própria direção.

E como toda memória se mantém unicamente no nicho da cultura, convertemos a existência da escrita em registro não só das nossas mãos mas dos nossos passos. Por isso, ao lado das interrogações insubornáveis sobre a vida e sobre a morte, pertencentes ao filosofar, e da conjuração das potências do sagrado, e suscitada pela necessidade do religar-se ao divino, não podemos nos desvencilhar - enquanto traço de união das demais artes - do apelo que nos fazem, originariamente, as escrituras sagradas ao lado das profanas. Pois escrever é a forma talvez mais poderosa de resistir ao tempo: e em face dos enigmas continuamente propostos pela realidade, até agora não conhecemos outra depois da oração.
Publicado no Jornal do Commercio no dia 21/05/13.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Ética da Alimentação

Não costumamos pensar que o que comemos é uma questão de ética. Roubar, mentir, prejudicar pessoas - esses atos são relevantes para o caráter moral. O mesmo se aplica também, algumas pessoas poderiam dizer, ao nosso envolvimento em atividades comunitárias, nossa generosidade em relação aos que precisam de ajuda e - especialmente - nossa vida sexual. Mas comer - uma atividade que é ainda mais essencial do que o sexo e da qual todos participam - é em geral vista de forma bem diferente. Tente pensar em um político em cujas perspectivas foram prejudicadas por revelações relativas ao que ele come.(1)

Nos nossos dias, problemas como o efeito estufa estão em constante debate na mídia, porém raríssimas vezes é mencionado em alguma reportagem a sua relação com a prática da pecuária, fruto do hábito das pessoas em comerem carne. Contudo, nossos juízos éticos, como um todo, precisam estar em constante desenvolvimento. Uma mostra disso é o critério técnico atual de "morte cerebral", para decidir quando alguém está morto, a evolução da questão do aborto, e até mesmo quando decidimos desligar a máquina que mantém uma pessoa em estado vegetativo viva. É importante que mantenhamos o espírito aberto sobre estas coisas e que permaneçamos em alerta sobre o que devemos fazer e os motivos para tais decisões.

A questão da exploração dos animais é abordada por Peter Singer pelos mesmos princípios que satisfazem o próprio entendimento humano a respeito da igualdade. O que faz sentido para a igualdade entre os homens - a igual consideração de interesses - torna imperativo que alarguemos a abordagem para os animais sencientes e/ou autoconscientes. O fato de os animais não pertencerem à nossa espécie não justifica o desrespeito pelos seus interesses, assim como não justifica desconsiderar os interesses de outro ser humano baseando-se na sua nacionalidade ou cor da pele. Quando nos colocamos efetivamente no lugar dos animais, vemos que os interesses da exploração pecuária intensiva serve - obrigando-a, por exemplo, a produzir carne de porco criando estes animais em jaulas tão estreitas, que eles mal podem se mexer - não pode justificar o sofrimento dos porcos. Para nós, comer carne de porco é somente um luxo, um prazer do paladar, mas para os porcos, significa uma vida inteira de miséria, dor, tédio e privação. Isto é algo que não se pode defender de um ponto de vista que considere o interesse dos animais, segundo as atribuições do critério da igual consideração de interesses.

Singer e Mason(1) defendem que uma alimentação ética passa, principalmente, por dois alicerces básicos: não prejudicar o meio ambiente, como no caso dos pesticidas e de alimentos que precisam de um profundo apoio logístico para o transporte, jogando na atmosfera toneladas de gases nocivos e não prejudicar o modo de vida de pessoas (quaisquer seres sencientes e/ou autoconscientes). Os autores propõem uma cartilha de como alimentar-se eticamente listando os principais princípios que consideram relevantes em relação à uma vida ética no que se refere à alimentação. Tais princípios não abrangem todos os aspectos moralmente relevantes, mas podem ajudar a decidir todas as questões éticas - exceto as mais controversas:
  • Transparência: Temos o direito de saber como  nosso alimento é produzido.
Há uma frase clichê que diz mais ou menos assim: "se todos abatedouros fossem de vidro, todos seriam vegetarianos". Isso não é completamente verdade, pois algumas pessoas conseguem se acostumar com quase tudo, até mesmo perdendo a sensibilidade. Todavia, a transparência é um modo excelente de sabermos se o alimento é produzido de forma ética, evitando práticas consideradas nocivas.

  • Justiça: A produção de alimentos não deveria impor custos aos outros.
Com efeito, o preço dos alimentos deveriam refletir os custos reais de produção. Assim, os consumidores podem escolher se querem pagar o preço. A produção alimentícia não pode prejudicar, por exemplo, a qualidade de vida de populações que morem nas redondezas de uma fazenda poluidora ou simplesmente causadora de mau cheiro, fazendo com que seja impossível os moradores das redondezas viverem bem. Nesse caso, o alimento só será barato por que pessoas estão pagando parte do custo - sem desejar. Qualquer forma de produção de alimentos que não seja ambientalmente sustentável será injusta a esse respeito, uma vez que reduzirá a qualidade de vida das futuras gerações.

  • Humanidade: Impor sofrimento significativo a animais por motivos menores é errado.
Mesmo as pessoas mais radicais, que se opões a idéias de "liberação animal" ou "direitos dos animais", concordam que deveríamos evitar causar dor ou outras formas de sofrimentos aos animais. Gentileza e compaixão em relação a todos, humanos e animais, são claramente mais positivas do que a indiferença em relação ao sofrimento de um outro ser sensível.

  • Responsabilidade social: Os trabalhadores deveriam receber salários e condições de trabalho decentes.
Um tratamento minimamente decente para funcionários e fornecedores exclui a mão-de-obra infantil, o trabalho forçado e o assédio sexual. Não pode haver discriminação de qualquer espécie, e os trabalhadores devem ter o direito de reunir-se em sindicatos, se assim o desejarem. O salário dos trabalhadores deve ser suficiente para cobrir suas necessidades básicas, de seus filhos e dependentes.

  • Necessidades: Preservar a vida e a saúde justifica mais do que outros desejos.
Uma necessidade genuína de alimentar-se, para sobrevivermos e termos uma nutrição adequada, suplanta muitas coisas que de outra forma seriam erradas. A própria lei brasileira prevê absolvição da pena no caso de roubo quando o réu pode provar que era caso de sobrevivência ou morte. Por outro lado, se escolhermos um alimento específico devido a hábitos alimentares ou simplesmente por que apreciamos seu sabor, em detrimento da vida de um ser sensível, quando poderíamos nos nutrir igualmente bem fazendo uma escolha diferente, essa escolha precisa estar coerente com os padrões éticos mais estritos.


Segundo Mason e Singer(1), os alimentos do sistema industrial são os piores de todos, em todos os aspectos. Sejam eles frangos, perus, ovos de galinhas criadas em sistemas de engaiolamento, vitela (carne de boi recém-nascido), porco, presunto e bacon, carne bovina do sistema de produção intensiva e, em menor grau, leite e laticínios, peixes criados em cativeiro e peixes selvagens. Em relação aos invertebrados (siris, caranguejos, lulas, polvos, camarões, lagostas, ostras, mariscos e mexilhões) os maiores problemas éticos são a sustentabilidade ambiental e a possibilidade de evitar o sofrimento injustificado.

Não obstante, talvez o drama maior em relação à sustentabilidade ambiental esteja relacionado aos animais marinhos, já que são tidos como alimentos saudáveis e há uma falsa idéia de que, pelo fato de o planeta possuir 3/4 de água, eles serão sempre imunes às intempéries da extinção. Na Semana Santa, por exemplo, a celebração da morte e ressurreição de Jesus divide o espaço com o boom do comércio e consumo de carne de peixes. O feriadão em questão, em especial a Sexta-Feira Santa, é a época em que mais se comercializa e se consome esse tipo de carne no ano. As feiras, peixarias e supermercados de todo Brasil lotam-se com milhões e milhões de peixes e uma multidão os compra para comê-los. A sociedade curte muito e a mídia incentiva, mas, aos olhos da natureza e da ética do respeito à vida animal, tais comportamentos se fazem perigosos e condenáveis.

A imprensa, alienando a população de todos os problemas éticos e ambientais causados pela pesca, mostra com satisfação a prosperidade temporária dos vendedores de peixes mortos, ignorando e/ou omitindo completamente que é essa mesma fartura que vem causando um dramático declínio na população de grande parte das espécies "pescáveis", se não todas, em todos os mares e oceanos do planeta.

As notícias sobre a queda e extinção local de muitas espécies de peixes multiplicam-se, mas, de forma quase irônica, as relacionadas ao comércio e consumo de "pescado", sempre acríticas, ganham destaque, muitas vezes nos mesmíssimos jornais, telejornais ou sites, durante o feriado cristão. Notas sobre preço, disponibilidade e demanda e receitas culinárias imperam nos dias anteriores à Sexta-Feira Santa, diz em que a carne vermelha é vedada da mesa dos cristãos - por motivos meramente religiosos, nada relacionados com ética, compaixão ou não-violência, e os fatos de que os peixes agonizam muito em asfixia depois de retirados da água e poderiam ter suas vidas poupadas e respeitadas graças à existência do vegetarianismo simplesmente inexistem perante o olhar dessa mídia.



Com todo esse estímulo da TV, dos jornais e dos portais on line e embalado pela tradição, o povo se esbalda com a carne aquática no feriado. Ignora-se completamente que o costume cristão vem ajudando muito, para não dizer fundamentalmente, para a já citada crise populacional dos peixes nas vastas águas da Terra. Para se ter uma idéia dessa que se mostra como uma calamidade ecológica, alguns dados:

  • Em 2008, a Organização Não-Governamental WWF anunciou que a pesca em grande escala está ameaçando nada menos que 75% da população de peixes no mundo;
  • Em 2009, o Portal Ecodebate, meio de comunicação relacionado à cidadania e às causas ambientais, reportou que na faixa territorial oceânica brasileira, 80% das espécies mais procuradas por pescadores estão ameaçadas de extinção por causa da sobrepesca e por causa da pesca por redes de arrasto. Segundo o mesmo portal, 80% dos bancos de pesca estão em declínio ou esgotados;
  • Em fevereiro de 2010, o portal Terra anunciou que o planeta Terra é incapaz de acompanhar o ritmo atual de consumo de carnes: a pesca está hoje num ritmo duas a três vezes superior à capacidade de regeneração das populações aquáticas das águas do planeta. Permanecendo esse ritmo, todas as espécies "pescáveis" terão desaparecido em 2050. Esta mesma reportagem anuncia que a população de atum-azul diminuiu 10% em relação a meados do século XX no Oceano Atlântico e no Mar Mediterrâneo. Na costa da Escandinávia, já foi extinta. Nas fazendas de aqüicultura da Europa, já caiu 25% em apenas um ano;
  • Segundo o Greenpeace, um terço da captura mundial de peixe é desperdiçada na produção de ração animal, de modo que pesca e pecuária estão intimamente interligadas: rações preparadas a partir de peixes representam 37% do total de peixes retirados anualmente dos oceanos; 90% dessa porcentagem são transformados em óleo ou farinha de peixe. Dessa farinha e óleo, 46% são utilizados como alimento na aqüicultura de peixes e outros 46% são destinados para ração da pecuária suína e aviária;
  • De acordo com o Portal Ambiente Brasil, das 30 espécies de tubarões pelágicos, que vivem em alto-mar, 11 correm risco de extinção por causa da pesca que captura tubarões inteiros, por suas barbatanas. Nesse caso, os tubarões são abandonados à morte depois de mutilados;
  • De acordo com a Scientific American, em 2007, a pesca profunda com redes de arrasto é capaz de levas embora, junto com os animais "pescáveis", até quatro toneladas de corais, o que vem contribuindo para a ameaça mundial que os recifes de coral estão sofrendo.
Também merece ser considerado o sofrimento desses animais quando são içados da água. Basta ver a força e o frenesi com que o peixe se debate depois de capturado, mais o movimento de sua boca quando já perdeu suas forças. Sua agonia é algo escancarado, visível a todos, mas é tratada com muita naturalidade e insensibilidade pelo pescador e totalmente ignorada por quem come esses bichos.


Os animais da pecuária intensiva, além de uma morte extremamente cruel e dolorosa, levam uma vida de privações e extremamente sofrida. Alimentos tidos como requintados, como o foie-gras (em português, seria algo como "fígado gordo", pois as aves são alimentadas à força, muitas vezes morrendo no próprio vômito quando não ficam doentes antes), ou a carne de vitelo (que captura o bezerro recém-nascido e dão-no uma dieta precária em ferro, para que fiquem anêmicos e a carne fique branquinha, suas cabeças são presas para que não se mova e a carne fique mais macia, e também para que ele não tente lamber as grades no desespero por ferro ou tente alimentar-se da própria urina) são as mais execráveis formas de condenação à morte de seres inocentes.

A humanidade, ao contrário de épocas remotas, já dispõe de tecnologia e do desenvolvimento da Filosofia Prática para que se tornem desnecessários quaisquer formas de sofrimento evitável. A morte de um ser único, sensível, capaz de relacionar-se entre membros de sua espécie e até mesmo com outras espécies, capaz de sentir dor e prazer, munido de memória e aspirações, não pode ser justificável no atual estágio de desenvolvimento intelectual e tecnológico do homem. Em pleno século XXI, nós temos como evitar esse sofrimento intenso: o desenvolvimento da nutrição vegetariana, com sua cada vez mais comprovada sustentabilidade nutricional, que torna o consumo de qualquer tipo de carne totalmente dispensável e nos permite respeitar o direito à vida dos animais e evitar que eles sofram em condições pífias de sobrevivência. A priori, todos os animais sencientes (exceto poríferos), têm o direito à vida e ao respeito ao seu consciente interesse de viver, e sua morte para consumo alimentar pode ser evitada com a adoção da alimentação vegetariana.

A alienação ambiental, a ética seletiva e o desamor perante formas sensíveis de vida são velhos costumes na semana santificada por uma religião que ironicamente prega a caridade e o amor ao próximo. Nesta época são praxe os pecados contra a vida e a natureza. E a cristandade, apoiada pela tradição e pela comunicação de massa, caminha tornando a biosfera cada vez mais desequilibrada e escassa de fauna causando sofrimento e morte despreocupadamente a bilhões de animais. Enfim, tornando o mundo pior.

(1)SINGER, Peter. MASON, James. A Ética da Alimentação. São Paulo: Elsevier, 2006.



segunda-feira, 8 de abril de 2013

A caminho da República Teocrática Brasileira

  O ESTADO LAICO JÁ MORREU (ou nunca existiu!)

Projeto de Emenda Constitucional 99/2011

Ementa:
"Acrescenta ao art. 103, da Constituição Federal, o inciso X, que dispõe sobre a capacidade postulatória das Associações Religiosas para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição Federal."

Voto do Relator:

"Há temas e questões que somente as lideranças religiosas podem focalizar tendo em vista as sensibilidades das mesmas para determinados assuntos que informam de maneira básica a prática do direito entre nós. A interpretação de muitas leis necessita da contribuição dos setores religiosos"

27/03/2013 - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ( CCJC ) - 10:00 Reunião Deliberativa Ordinária - Aprovado o Parecer.
 PEC 99/2011 - Projetos de Lei e Outras Proposições - Câmara dos Deputados

É incrível que no Brasil ainda precisemos lutar por direitos tão básicos. Este também é o tema da nova enquete. Você é a favor da laicidade do Estado, como ocorre no Uruguai, ou a favor de um vínculo cada vez mais próximo do Estado brasileiro com as Igrejas e as mudanças da Constituição nesse aspecto? Vote ao lado.

As desrazões de Azevedo, Garcia e Sheherazade



* Por George Fernandes, professor de Filosofia do Colégio Atual e da FAFICA formado pela UFPE.

AS DESRAZÕES DE AZEVEDO, GARCIA E SHEHERAZADE
Ou porque uma opinião não é só uma opinião

Perdão, mea culpa.

Milhares de compartilhamentos. Centenas de elogios. Hipnotizados por uma retórica que parece reafirmar o óbvio, como não concordar com aqueles que defendem o nosso sagrado direito de expressão? É constitucional, afirmam. É constitucional, repetimos. E capitulamos juntos: violentos são vocês, os que não admitem o contraditório. Está feita a inversão: Afinal, que mal há em uma simples opinião? Os equivocados somos nós, os que tentam cerceá-la.

Há como negar? Pausa dramática. Sim, há.

É só uma opinião, caramba!

Quando alguém que diz “é só uma opinião”, fico sempre com vontade de perguntar o que diabos isso significa. Não o significado de opinião, claro, mas do adverbio ali presente. Porque para mim não existe isso de “é só uma opinião”. Uma opinião, no sentido lato, é sempre uma tomada de posição em relação a algo. Ao emitir uma opinião, dizemos aos outros como compreendemos e avaliamos determinado assunto. Portanto, não é algo de somenos. As opiniões nos definem, delineiam a nossa posição num espectro ideológico e ajuda-nos a definir com quem temos maior afinidade ou não. Não há opiniões inocentes. No máximo, opiniões ingênuas.

Há quem diga “é só uma opinião” como quem diz “não o leve a sério, é apenas um ponto de vista”. Tudo bem. De fato, em sentido restrito agora, uma opinião não é outra coisa senão uma crença que não passou pelo crivo do senso crítico. Porém, isso não a inocenta. Não a torna menos perigosa ou menos influente. Quem opina sobre as relações de gênero e afirma que as mulheres devem ser mantidas sob o comando dos homens, pode até estar repisando certos clichês sem se dar conta disso, entretanto essa “inconsciência” não torna ninguém menos sexista ou misógino.

Isso é óbvio? Não para nossa imprensa. Para ela, e para tantas outras pessoas, uma opinião racista, por exemplo, não torna ninguém racista. Aliás, para certos setores de nossa imprensa uma opinião é só uma opinião. Não expressa uma determinada leitura de mundo, não faz parte do embate ideológico travado constantemente nas redes sociais, não diz nada sobre como compreendo determinados temas e me posiciono em relação a eles. Uma opinião não é nada. Aliás, perdoem-me, ela é algo sim: uma opinião. Palavra vazia, inocente, boba, higiênica porque limpa de toda contaminação ideológica. Uma opinião? Ah, seus implicantes! Uma opinião é só uma opinião...

E a liberdade, tio?

Fica como está. Uma das estratégias mais sacanas dos formadores de opinião é nos acusar de tentar cercear a liberdade de expressão do deputado pastor. Mentira! Ninguém está tentando calar o deputado. O embate aqui é travado em outro nível. Assim como ele tem o direito de opinar sobre o que quer que seja, nós temos o direito de considerá-lo inapto para o cargo que atualmente exerce. E é em função de suas opiniões sim. Propositadamente confundem as críticas que fazemos aos pronunciamentos do pastor com cerceamento à liberdade. É um arenque vermelho: Ao invés de rebater as críticas que são feitas ao pastor por assumir um cargo que exige um perfil diferente daquele que ele tem apresentado, conduzem o debate para um plano que não possui relação nenhuma com o que está sendo discutido. Ninguém anda a dizer “Calemos o Feliciano!”. O grito de ordem é outro e não tem nada a ver com impedir alguém de opinar sobre o que quer que seja.

Santa Falácia, rogai por nós que recorremos a vós.

Alexandre Garcia rezou para a mesma santa perante a qual se ajoelharam Reinaldo Azevedo e Rachel Sheherazade: A Santa Falácia. O trio, de forma pra lá de suspeita, escamoteia diversas declarações do Marco Feliciano e tenta conduzir nossa atenção apenas para suas declarações sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Ora, isolada das demais declarações, essa declaração em especial, por si só, não nos permite, de fato, chamar o pastor de homofóbico (no sentido forte do termo). O problema, e todos nós sabemos disso, é que essa não foi a única declaração dele sobre o assunto. Portanto, os três incorrem numa falácia conhecida como "falácia da omissão de provas". Ou seja, excluíram de seus argumentos dados importantes que uma vez levados em consideração, mudariam a conclusão do argumento ou o invalidariam.

Má fé? Maybe.

Alexandre ainda incorre em outra falácia: a da falsa analogia. Estou cansado agora e não vou tentar desmontá-la, mas o processo é simples: basta alguém mostrar que as comparações feitas por ele entre as frases “A América Latina é maldita pela corrupção” e a frase “Os africanos são amaldiçoados”, divergem de tal modo que a analogia torna-se inviável. Não é difícil. Uma dica: podemos começar pela representação social do continente africano, que tal?

Crime de opinião?

Pois é! Isso não existe. Mas caro sinhô, você nunca leu Austin? Nunca entrou em contato com a Análise do Discurso? Nunca leu Foucault não, meu filho? É preciso alguém tascar um lâmpada na cara de um homem homoeroticamente orientado para ser tachado de homofóbico e heterossexista? Só são racistas aqueles que colocam uma placa no seu estabelecimento comercial avisando que ali não entram negros? Gente, que ótimo! Se os discursos são só discursos, então definitivamente vivemos no melhor dos mundos.

Raquel, a Sheherazade

Fia, presta atenção:  O pastor não é só uma autoridade parlamentar, é uma autoridade religiosa também. Ou seja, sua palavra tem o poder de influenciar e modificar não somente as crenças, mas igualmente o comportamento das pessoas. A senhoura até pode defender o direito dele se pronunciar. Isso eu também defendo. Todos nós, aliás. O que não dá para aceitar é ouvir alguém supostamente inteligente amenizando as declarações do Feliciano porque, lá vamos nós mais uma vez, são apenas opiniões pessoais. O direito que ele tem de falar o que der na telha, temos nós de criticá-lo e de achar, sim senhoura, que por suas opiniões ele não tem o perfil para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

Não é perseguição não, fia. É exigência de coerência. E não vale só para ele não! Vale para todos que estão lá, do Blairo Maggi ao José Genoíno. A questão nunca foi religiosa, como vocês insistem em colocar. Estivesse um Dom Helder Câmara lá, estaríamos provavelmente contentes.

Sabe, nós respeitamos a liberdade de crença. Tanto que você pode até continuar queimando seus incensos no altar de Santa Falácia. Já nós... Bem, nós continuaremos a acender nossas velas no altar de São Bom Senso. Sabe cumé, né? Essa é a nossa escolha, a nossa (assumida) opinião.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A alfabetização científico-filosófica e a doutrinação das crianças



Uma das piores violências culturais que uma pessoa pode sofrer é, muitas vezes, involuntária. Trata-se da doutrinação mística/religiosa por parte de familiares ante a uma criança que ainda não tem a distinção cognitiva de pensar por si só. Além de ser eticamente condenável, é um abuso previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, onde toda a criança e adolescente tem direito à liberdade de crença (e, conseqüentemente, de descrença) e de escolher, quando o juízo próprio permitir, o seu próprio caminho.

As crianças se tornam, em grande parte, adultos que não tiveram a opção de observar o mundo com seus próprios olhos. Muitas vezes, logo ao nascer, o bebê ocidental já tem um crucifixo no alto da parede de seu quarto, dando aos visitantes claros sinais de qual doutrina o pequeno irá tirar sua visão de mundo. Isso não é muito diferente nas outras culturas, cada qual com seu deus ou deuses, haja vista que a religião é um aspecto fortemente ligado à cultura de seu povo. Ainda que os pais sejam de determinada corrente religiosa, é inadmissível, do ponto de vista moral, considerar razoável que seus filhos tenham sua liberdade tolhida desde a mais tenra infância. Dentro da malha intelectiva e cultural dos pais, aliadas à própria experiência de vida, pode-se considerar que tal imoralidade seja algo involuntário - há uma forte crença, do qual eles também são vítimas num ciclo vicioso, de que estão elevando os filhos à salvação - porém ainda assim imoral. Uma involuntariedade que muitas vezes é capaz de tolher e amputar o livre pensamento dos adultos do futuro, que deveriam ter a iniciativa própria de escolher seu próprio sistema de crenças ou até mesmo o abandono de todas elas, mediante a alfabetização científico-filosófica.

Quando as pessoas são alfabetizadas cientificamente e filosoficamente, a crença torna-se uma opção. Isso não quer dizer que todos que tenham uma sólida formação científica e filosófica abandonam todos os sistemas de crenças, é bom frisar. Apenas que a figura de deus e dos dogmas tornam-se apenas contingentes. A necessidade absoluta de uma crença mística qualquer só se torna fundamental quando não há outra saída razoável: o mundo é incrível e no não-entendimento das coisas, busca-se explicações mirabolantes no intuito de acalmar a alma. A religião cumpre esse papel mantendo as pessoas na ignorância - que todos temos - com o diferencial de que nesse caso a própria ignorância e a acomodação em explicações místicas sem sentido trate-se de uma virtude. Sair do nível místico ao investigativo pode significar um longo processo, mas é um amadurecimento extremamente compensador.

Não está sendo proposto aqui um caminho infalível ou uma verdade incontestável a respeito do que se deva crer ou não-crer. O que está sendo exposto é a defesa e o respeito ao livre pensamento e crença de todas as crianças, fazendo-se valer o Estatuto supracitado. Por mais que a visão mágica do mundo seja prazerosa para alguém, este mesmo alguém não tem o direito de julgar que seria o mesmo para outro - isso é um atentado à individualidade. Para o outro, o entendimento das coisas como elas são de fato podem fazer muito mais sentido - e ser igualmente maravilhoso.

domingo, 17 de março de 2013

Todo o sentimento

No cume tenebroso sempre certo,
Perturbado fico, logo d'antemão.
No vento assombroso que disperso,
Criando - n'outro vértice - a sucção.

Suga, sugando tudo no inferno,
Sem mostrar um só pingo de comoção.
Bate, soltando sentimento já liberto,
E somente vaga sofrendo retaliação.

Recuso-me a vestir o negro terno,
Desde que estremeço-me pela ambição.
Queimando o fogo em pleno inverno,
Sem hipótese de morrer num alçapão.

Pelo leito, de esperança fui coberto
Entre as aspas do que fala o coração...
E na evidência da energia sempre perto,
Almejo pela nova aurora sem intenção.

Já fraco, submeto-me ao deserto
Que a ausência converte em mim a emoção,
Tombando no mesmo céu aberto
Que outrora calava a minha solidão.

Embora vai a tumba de meus versos,
Na brevidade do tempo, no vigor d'um batalhão!
Renova a paz na fé do que seja eterno,
Refazendo todo o sentimento que corroía n'exaustão.

terça-feira, 12 de março de 2013

A obrigação dos ricos para com os pobres segundo Peter Singer



Alguns anos atrás, o Banco Mundial pediu a pesquisadores que ouvissem o que os pobres tinham a dizer. Eles conseguiram documentar a experiência de 60 mil homens e mulheres em 73 países. Repetidas vezes, em diferentes línguas e diferentes continentes, as pessoas disseram que a pobreza significava as diferentes coisas:
  • Você tem pouca comida durante o ano todo ou parte dele, muitas vezes fazendo uma refeição por dia,  às vezes tendo de escolher entre matar a fome do seu filho ou a sua própria, e às vezes não podendo fazer nenhum dos dois.
  • Você não consegue juntar dinheiro. Se um parente fica doente e é preciso dinheiro para levá-lo ao médico, ou se a colheita não vinga e você não tem nada para comer, é preciso pegar dinheiro emprestado com um agiota local - ele cobrará juros altos, a dívida continuará crescendo e talvez você nunca se livre dela.
  • Você não tem dinheiro para mandar seus filhos para o colégio, ou se eles entram no colégio, é preciso  tirá-los de lá novamente se a colheita for ruim.
  • Você vive em uma casa instável, feita de barro ou de palha, que necessita ser reconstruída a cada dois ou três anos, ou depois de cada intempérie.
  • Você não tem uma fonte próxima de água potável. É preciso carregar a água por um longo caminho e, mesmo assim, ela pode causar doenças, a menos que seja fervida.
Mas pobreza extrema não é apenas uma questão de necessidades materiais não satisfeitas. É muitas vezes acompanhada de um estado degradante de impotência. Mesmo em países democráticos e relativamente bem governados, os entrevistados do Banco Mundial descreveram uma série de situações em que tiveram de aceitar humilhações sem reclamar. Se alguém tira o pouco que eles têm e eles reclamam à polícia, é bem possível que esta não lhes dêem ouvidos. Assim como nada garante que a lei os protegerá contra estupro ou o assédio em geral. Há um sentimento difuso de vergonha e fracasso, porque eles não conseguem sustentar seus filhos. A pobreza os aprisiona, e os fazem perder a esperança de um dia sair de uma vida de trabalho do qual, no fim, nada resultará senão a mera sobrevivência. (1)

Segundo o princípio da igual consideração de interesses, defendida por Peter Singer, temos uma obrigação moral de ajudar alguém em necessidades, independentemente de este alguém ser o nosso vizinho ou uma criança desnutrida da Somália. Segundo dados atualizados da ONU, há hoje 1,4 bilhão de pessoas abaixo da linha da pobreza, ou seja, vivendo com menos de U$1,25 por dia. Até 2008, eram consideradas abaixo da linha da pobreza pessoas que ganhavam menos de U$1,00 por dia, porém os critérios que determinavam esse número tornaram-se em parte obsoletos e as contas precisaram ser refeitas.

Em países ricos, a relação com a pobreza é bem relativa. Nos Estados Unidos, segundo o Census Bureau, 97% dos considerados "pobres" tem televisão a cores. 75% dos "pobres" têm um carro na garagem, e a mesma proporção possui um aparelho de DVD. Não se está considerando aqui que uma pessoa pobre num país rico não enfrentem dificuldades reais, mas é factual que considerando-se os padrões de países do chamado Terceiro Mundo, eles seriam a elite financeira da população.

O total de 1,4 bilhão de pessoas que estão em estado de pobreza extrema hoje no mundo são pobres de acordo com um padrão absoluto, vinculado com as necessidades humanas mais básicas. É provável que passem fome ao menos uma parte do ano, e mesmo que consigam preencher o estômago, provavelmente serão mal nutridas, pela carência de nutrientes essenciais. Esse tipo de pobreza mata.

A universalização, para Singer, é fundamental para um agir ético coerente. Quando adota-se uma postura moral, deve-se considerar as questões do ponto de vista de todos que serão afetados. Isto significa que temos de nos colocar imaginariamente na posição deles, assim como na nossa, e de decidir o que fazer depois de dar tanto peso às suas preferências como que damos às nossas. Se fizéssemos isso relativamente às pessoas mais pobres que vivem nos países menos desenvolvidos, veríamos o quanto gastamos com supérfluos que podem muito bem serem revertidos em saciedade das necessidades básicas de outras pessoas, e isso pode fazer uma grande diferença às pessoas miseráveis no mundo. Se déssemos aos interesses desses pobres o mesmo peso que damos aos nossos, como deveríamos fazer, daríamos dinheiro a organizações que ajudam essas pessoas a superar sua pobreza e a tornarem-se auto-suficientes.

Peter Singer defende que é moralmente inaceitável um abastado gastar bilhões para ser mandado para fora da órbita terrestre pela NASA, ou gastar algumas centenas de milhões num iate poluidor com submarino e heliporto, enquanto, por outro lado, o UNICEF estima que centenas de milhares de crianças que ainda morrem de sarampo a cada ano poderiam ser salvas por uma vacina que custa menos de U$1,00 a dose. Em seus prospectos, a Nothing But Nets - organização concebida pela NBA - que tem projetos para proteger crianças da malária, menciona que "se você doar U$100 para a Nothing But Nets, estará salvando dez vidas", isto é, para cada dez dólares doados, em média, uma vida pode ser salva. Há diversas ONGs fazendo um bom trabalho, e existem ONGs paralelas que fiscalizam a eficiência de como o dinheiro é aplicado por elas, fornecendo detalhes e tornando a doação transparente. Infelizmente, a denúncia de certas ONGs fraudulentas atrapalham o trabalho de ONGs sérias, que fazem um trabalho efetivo no objetivo de eliminar a pobreza mundial.(1)


Seguindo esse raciocínio, é importante que possamos criar uma cultura de doação, e Singer sugere que isso pode ser feito baseando-se proporcionalmente em relação à renda anual de cada pessoa em condições de doar. Uma força-tarefa das Nações Unidas estimou quanto custaria eliminar a pobreza mundial a partir da realização de seus projetos. A força-tarefa se baseou em avaliações preliminares feitas em Bangladesh, Camboja, Gana, Tanzânia e Uganda, que indicaram que os objetivos de desenvolvimento poderiam ser alcançados por um custo per capita de U$70 a U$ 80 em 2006, aumentando à medida que os projetos são gradualmente ampliados, para U$120 a U$160 em 2015. A partir disso, a força-tarefa chegou a uma estimativa global de U$121 bilhões em 2006, subindo para U$189 blhões em 2015. Baseado nisso, Singer calcula quanto de cada pessoa rica precisaria doar para a eliminação da pobreza mundial, numa soma combinada. De acordo com o Branko Milanovic, do Banco Mundial, se definirmos "ricos" como aqueles que têm uma renda acima da renda média e Portugal (o país com a menor renda média no "clube dos ricos" da Europa Ocidental, América do Norte, Japão, Austrália e Nova Zelândia), então há 855 milhões de pessoas ricas no mundo. Se cada um destes ricos doasse apenas U$200, isso perfaria U$ 171 bilhões (aproximadamente a quantia que a força-tarefa das Nações Unidas acredita ser necessária a cada ano para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.(1)


Porém, Singer tem metas mais ousadas, baseada na divulgação da necessidade de uma cultura de doação - o próprio Singer contribui com 20% de todo o seu rendimento - que leva em conta não valores absolutos per capita para uma quantia global, mas o rendimento factual de cada um. Ou seja, aqueles chamados "super-ricos" teriam de doar muito mais do que aqueles que estão só um pouco acima da média do critério estabelecido.

(1) SINGER, Peter. Quanto custa salvar uma vida? Agindo agora para eliminar a pobreza mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

terça-feira, 5 de março de 2013

Seria o homem naturalmente místico?



É bem verdade que a Filosofia, bem como, mais tarde, a ciência secular, permitiram à humanidade alcançar níveis de entendimento a respeito do universo e tecnologias sem precedentes, antes inimagináveis. Ao ponto de desenvolvermos uma cultura mais complexa em relação aos outros animais e, até mesmo, ter a postura soberba de que o nosso desenvolvimento tecnológico nos faz diferentes dos outros animais; mito que foi propagado também pelas religiões de todo o globo em suas relações cíclicas onde o Antropocentrismo é o próprio fundador do Teocentrismo, já que todos deuses são reflexos de seu povo. Essa crença só foi por terra definitivamente no século XIX, devido aos trabalhos de Charles Darwin.

Ouvimos, desde crianças, que "o homem é um animal racional". Da maneira como se propaga esta afirmativa aristotélica, ela virou um verdadeiro mantra - que, aliás, é extremamente questionável nos nossos dias, em que conhecemos melhor outros animais e suas capacidades, bem como o próprio conceito de racionalidade também não é algo que se possa atribuir universalmente à nossa própria espécie. Hoje, graças ao secularismo, podemos buscar a compreensão das coisas e entendê-las, ao invés de pura e simplesmente acreditar sem questionamentos, baseando-nos em alguma mitologia escolhida, ainda que o conhecimento verificável - seja o filosófico, através do princípio da razão e da lógica, seja o científico, através de suas nuances empíricas e probabilísticas - seja fundalmentalmente revisionista por princípio e necessidade, já que só algo eternamente em construção e questionamento pode ter alguma credibilidade perante o juízo de seus próprios princípios, dando sentido àquilo que por ventura se conclui.

Contudo, o esforço que é necessário para atingirmos tal patamar é titânico. É um trabalho constante, que se relaciona com todas as áreas do conhecimento na busca de levar o pensamento científico para a sociedade como um todo, tendo como a maior ferramenta de todas a Educação. Todavia, o conhecimento racional continua limitado a ciclos acadêmicos e científicos muito restritos, que não é capaz de atingir a sociedade como um todo. E ainda há o agravante de que, na sociedade capitalista, o conhecimento técnico (ainda que com o status de universitário, em alguns casos) seja o mais viável para aquele que deseja se bem posicionar na comunidade. O sistema econômico ajuda a marginalizar o pensamento acadêmico e a ciência acabou se tornando refém do financiamento de grandes grupos econômicos que geram tecnologias robóticas, produzindo ciência como se ela fosse uma filha bastarda das Humanidades. Para Platão e os pitagóricos, a intuição, apesar de ser um conhecimento inferior, também pode ser considerado válido sob determinadas condições, como nas relações sensoriais e na matemática. E, através dessa intuição empírica, percebo que a condição natural do homem caminha em paralelo com esse conhecimento verificável. O homem comum do nosso tempo, mesmo com todas as conquistas do pensamento racional, goza de todas as benesses das ciências, mas em geral não as compreende e até mesmo se opõe aos seus princípios. Nesse aspecto, nosso mundo "ainda é rodeado de deuses e mitos", e temos os mesmos desafios daquele primeiro filósofo de Mileto que ousou pensar o mundo para além do mitológico - ainda que não completamente desvencilhado dele. Hoje, nossos termos são outros. Religiões fracassadas são consideradas "mitologias", restringindo o termo aos casos antigos, sendo o mesmo utilizado na tentativa de diferenciar as religiões que ainda possuem fiéis. A superstição é, ainda, predominante em todas as sociedades.

Ainda que não possamos afirmar de maneira apodídica que o homem é religioso por natureza, intuo que lutamos uma batalha perdida. Temos a capacidade de raciocinar, mas potência não torna-se necessariamente ato. Se é fato de que, em tese, todos os seres humanos saudáveis são capazes de raciocinar, isso não torna esses mesmos entes em seres pensantes de maneira automática. Talvez a nossa verdadeira realidade, aquela que acontece naturalmente, sem esforços, seja a do homem mítico, que desenvolveu a inteligência para além dos outros animais, se espantou com o que viu, voltou para a caverna e, dentro dela,  sua inteligência incipiente foi capaz de povoar seu mundo de magia, acalmando-lhe a alma. Talvez os seculares, humanistas e os filósofos (não me refiro nesse caso aos decoradores da História da Filosofia) sejam aqueles que continuam fazendo o papel do libertário que vai de encontro à luz - e que talvez, ao contrário do que sonham alguns, essa "luta" seja de encontro à nossa própria natureza.