segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A República, Livro VI

A base ética e a base epistemológica

Após a conclusão de que ‘filósofo’ denominar-se-ia apenas àqueles que se prendem à verdade, ou seja, enxergam as coisas em si mesmas, em sua “essência imutável” – contraposição em relação à doxástica – diferenciou-se o filósofo daqueles que não o são.
A tarefa de escolher quem governaria o Estado assemelhava-se à tarefa de distinguir o homem que busca o imutável daqueles que são incapazes, que “erram na multiplicidade dos objetos variáveis”. E em relação ao caráter filosófico, este seria o caráter dos que amam sempre a ciência, pelo mérito que esta pode conceber essa tal essência eterna a que tanto Platão se refere e tem espelho nos universais. Essa essência “não está sujeita às vissitudes da geração e da corrupção”. (192)
Neste livro, temos aqui o problema fundamental da ética, o ponto crucial da teoria da conduta moral. O que é justiça? Devemos procurar a integridade ou o poder? É melhor ser bom ou ser forte? Como é que Sócrates – isto é, Platão – enfrenta o desafio dessa teoria? A princípio, ele não a enfrenta de maneira alguma. Ostenta que justiça é uma comunhão entre indivíduos e isso provém das virtudes de sua organização social; o que, por conseguinte, pode ser melhor estudada como parte da estrutura de uma comunidade do que como uma qualidade de conduta pessoal.
Se, sugere ele, pudermos imaginar um Estado justo, estaremos em melhores condições para descrever um indivíduo justo. E Platão justifica essa tese com alicerces na investigação da própria vida do homem e a tentativa de perceber-lhe a vista, ou o modo como o homem encararia diversas situações a partir do meio em que vive. Se desde a infância e nos devidos moldes, é possível conceber o homem ideal, puro, incorruptível e distante da injustiça e do vício.
Adentrando no diálogo a respeito da questão ética, seria naturalmente propício credenciar e honrar aqueles homens mais sábios, os filósofos, para o alto comando da cidade. Questiona-se a utilidade do filósofo na sociedade, e com isso Sócrates (Platão) argumenta prolixamente que só assim são vistos pelo fato de não ocuparem o posto que lhes é devido. Os chefes deveriam ser, naturalmente, os homens mais sábios.
E quais as características inerentes a tal homem? “Um homem regrado, desprovido de avidez, baixeza, arrogância e covardia” (194) não poderia ser injusto. E vai além: “quando quiseres distinguir a alma filosófica daquela que não o é, observarás, a partir dos primeiros anos, se ela se mostra justa e branda ou feroz e intratável”. (194)
Um dos maiores problemas na questão da teoria do conhecimento, para Platão, e a mais grave acusação que se faz contra a Filosofia provém justamente daqueles que dizem-se filósofos sem, fatualmente, sê-lo. E são estas figuras que estão presentes nas mentes dos ‘inimigos’ da filosofia, quando imaginam, (como Adimanto admite no diálogo), que os filósofos não são mais que gente “perversa” e que “os mais sábios são inúteis”. (198) A partir da perversidade da grande parte entre os falsos filósofos, Sócrates se dispõe a provar que tais exemplos não se tratam, de maneira alguma, de filósofos.
A partir da noção do caráter naturalmente nobre e bom, já identificado por Sócrates, guiado pela verdade, que sob todos os aspectos e sob qualquer pena, almejar-se-ia nada mais nada menos do que a verdade em si. Usando de impostura, jamais participar-se-ia da verdadeira filosofia.
Para defender-se, Sócrates alega que “(...) o verdadeiro amigo da ciência não se detém na multidão de aspectos das coisas transitórias, das quais somente pode ter um conhecimento incerto e precário, mas vai além e busca, com vigor e aplicação, penetrar a essência de cada coisa com o elemento da sua alma a que compete fazê-lo; em seguida, tendo-se ligado e unido, por uma espécie de himeneu, à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência e a verdade, atinge o conhecimento do ser e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e a calma para libertar-se enfim das dores do parto, das quais por nenhum outro meio se poderia livrar”. (198-199)
Além de tudo, há de se perceber – segundo Sócrates, no temperamento filosófico que tendo como guia a verdade e não a hipocrisia dos sofistas – que liberta-se do coro dos vícios, que rege a injustiça. Ao contrário, a verdade acompanha pureza e a justiça, que por sua vez é seguida pela moderação.
Além de combater os falsos filósofos, enumerar-se-ia novamente as outras virtudes que compõem o temperamento filosófico, tais como a coragem, a grandeza da alma, a facilidade em aprender e a memória. Além destes ‘pré-requisitos’, afastaria também do pensar verdadeiro os atributos “da beleza, riqueza e (...) todas as vantagens desse tipo”. (200)
Na obrigação de introduzir novos costumes e crenças, o povo continuaria sendo hostil com os filósofos na medida em que afirmar-se-ia que a sociedade ideal propõe uma completa alteração em seus costumes e crenças, desde essa pronta geração, para que tenha um êxito inicial, que permitisse fidelidade às gerações futuras? No desenrolar do diálogo, conclui-se que não o será, desde que haja a compreensão.
E o plano desenrolar-se-ia “começando por considerar o Estado e os caracteres humanos de seus cidadãos um pano que (...) tentarão limpar com escrúpulo, o que não é nada fácil (...) não quererão ocupar-se de um Estado ou de um indivíduo para lhe dar apenas leis, senão quando o tiverem recebido imaculado ou tornado imaculado eles próprios”. (211) Recorre-se, portanto, à arte do convencimento, sob uma proposta de forte apelo religioso no intuito de alcançar tais objetivos.
Em relação à divisão do mundo cognoscível, teria a alma como a primeira parte desse segmento, que é obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses, seguindo um caminho que a leva a uma conclusão. No segundo segmento, a alma parte da hipótese para chegar ao princípio absoluto, sem lançar mão das imagens, como no caso anterior, e desenvolve sua análise servindo-se unicamente das idéias.
O objeto sensível, que parte das figuras, pertencem à classe do cognoscível, e para reconhecê-los a alma é obrigada a recorrer às hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que produzem sombras no segmento inferior e que, em relação a essas sombras, são tidos e considerados como claros e distintos.
O que Platão entende por segunda divisão do mundo cognoscível é aquela que a razão alcança pelo poder da dialética, considerando suas hipóteses, isto é, pontos de apoio para se elevar até o princípio universal que já não admite hipóteses. Na medida em que se atinge esse princípio, apegar-se-ia também a todas as suas conseqüências à última conclusão, “sem recorrer a nenhum dado sensível, mas somente às idéias, pelas quais procede e às quais chega”. (223)
Por conseguinte, em “A República”, Sócrates pede a Glauco que aplique as quatro operações da alma: a inteligência à seção mais elevada, o conhecimento discursivo à segunda, a fé à terceira, a imaginação à última. Platão, desta forma, sistematiza hierarquicamente superiores as operações que ele considera mais produtivas em relação à verdade.

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