Nas últimas décadas, o mundo tem sido palco de mudanças drásticas das atitudes morais. A maior parte delas ainda é polêmica, como o aborto, proibido quase no mundo todo há trinta anos, é legalizado hoje na maior parte do globo. E outras atitudes morais em relação à postura das pessoas diante do sexo fora do casamento, homossexualidade, pornografia, eutanásia e até o suicídio. Por maior que tenham sido as mudanças, não é possível afirmar que se chegou a nenhum novo consenso: “(...) [tais] questões continuam sendo polêmicas, e é possível defender cada uma das partes sem pôr em risco a nossa posição intelectual ou social.”¹
Contudo com a questão da igualdade passou-se algo diferente. Houve uma perceptível mudança em relação da igualdade – especialmente no que tange ao racismo – e ninguém hoje pode declarar-se contra a máxima de que todos são iguais sem sofrer danosas conseqüências das mais diversas, seja na vida pública ou na privada. As idéias racistas que dominavam a Europa na virada do século retrasado para o século passado hoje seriam inaceitáveis. Mas em que sentido nós somos iguais?
Se formos além do consenso de que as formas notórias de discriminação racial são condenáveis, o fato é que nós não somos iguais: uns são mais baixos, outros mais altos, alguns mostram excelente aptidão para música, já outros preferem matemática, e assim por diante. John Rawls² tentou estabelecer racionalmente uma base para a condição de igualdade, a qual ele chamou “propriedade de âmbito”. A propriedade de âmbito alega que a igualdade pode basear-se nas características fundamentais dos seres humanos. Vamos supor que tracemos um círculo num pedaço de papel. Todos os pontos no interior do círculo – é esse o “âmbito” – têm a propriedade de estar dentro do círculo, e todos têm igualmente essa propriedade. Alguns pontos podem estar mais próximos do centro do círculo, outros na periferia, mas todos estão igualmente dentro do círculo. Essa diferença justificaria as distintas características dos indivíduos. Dessa forma, Rawls identifica a “personalidade moral” como inerente a todo e qualquer ser humano, e todos possuem-na igualmente. Ele utiliza o termo “moral” em contraste com “amoral” e não uma personalidade necessariamente moralmente boa. Essa personalidade moral, diz Rawls, gera um senso de justiça.
Segundo Singer¹,
“Rawls afirma que a personalidade moral constitui a base da igualdade humana, um ponto de vista que provém de sua abordagem ‘contratual’ da justiça. A tradição do contrato vê a ética como uma espécie de acordo mutuamente benéfico – grosso modo, algo como ‘Não me agrida para não ser agredido’. Portanto, só estão dentro da esfera ética aqueles que são capazes de compreender o fato de não estarem sendo agredidos e de, conseqüentemente, refrear a sua própria agressividade”.
Contudo, há diversos problemas em relação ao uso da personalidade moral como condição básica da igualdade; concentrar-me-ei nas mais significativas. Uma das objeções é que a personalidade moral incute uma questão de grau, isto é, enquanto algumas pessoas são extremamente sensíveis às questões de justiça e ética, outras têm somente uma consciência limitada de tais princípios; e alguns são simplesmente mais inteligentes que outros. A questão como proposta por Rawls não delimita esta fronteira, e é incapaz de explicar este problema. Não há no argumento da personalidade moral algo que delimite esse mínimo. Conseqüentemente, não é intuitivamente óbvio pois, sendo a personalidade moral tão importante, não deveríamos ter graus de status moral, com diferentes direitos e deveres, relacionados proporcionalmente ao grau de refinamento do senso de justiça de cada um.
Contudo, o que deixa ainda mais frágil o pensamento de John Rawls a respeito da igualdade, é de que é simplesmente inverdade que todos os seres humanos são pessoas morais, ainda que no sentido mais ínfimo da palavra. Podemos exemplificar os casos de deficientes mentais profundos ou bebês e crianças, que carecem do necessário senso de justiça. E nossa noção de igualdade jamais exclui bebês, crianças e deficientes mentais. Portanto, precisamos nos atentar para outros fatores que possam delinear racionalmente as condições mais básicas de igualdade.
A questão da inteligência também não pode ser considerada como um atributo para a igualdade – já que ela difere de um indivíduo para outro – ou argumento para a desigualdade, já que uma sociedade baseada numa hierarquia escravagista por intermédio de testes de QQII seria extremamente condenável. Se não podemos basear nossas condições de igualdade na raça, na propriedade de âmbito ou na inteligência, quais seriam os alicerces da igualdade?
Peter Singer considera que, para conseguirmos uma condição de igualdade necessária, precisamos considerar atributos relevantes. A única razão logicamente imperiosa para considerarmos outro indivíduo é quando consideramos seus interesses. Para Singer, “a igualdade é um princípio ético básico, e não uma assertiva factual.”¹ E isso, finalmente, nos proporciona um princípio ético básico: a igual consideração dos interesses.
Só o igual consideração de interesses é capaz de mostrar racionalmente que são equivocadas quaisquer formas de discriminação, tais como o sexismo ou o racismo: os nazistas, por exemplo, só estavam preocupados com o bem-estar de sua suposta raça “ariana”, ignorando por completo os interesses dos judeus, dos ciganos e dos eslavos.
O princípio da igual consideração de interesses não é puramente formal, é substancial e forte, pois é capaz de excluir o racismo e o sexismo. Além disso, “(...) se examinarmos o impacto do princípio (...) [numa] sociedade hierárquica imaginária baseada em testes de inteligência, poderemos ver que ele é forte o bastante para proporcionar uma base que permita rejeitar também essa forma mais sofisticada de não-igualitarismo.”¹
Os interesses naturais mais fundamentais dos indivíduos estão relacionados com o bem-estar, como não sentir dor. Isso nos dá um referente biológico, que é o sistema nervoso central, que também relaciona-se com a aquisição do prazer. Fatores como a auto-preservação, consciência de si e capacidade de relacionar-se com outros indivíduos também são relevantes. Uma vez aceito esse princípio básico, é eticamente prudente que extendamos este princípio a todos os indivíduos que são dotados dos mesmos interesses, independentemente da espécie.
¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
² RAWLS,
John. Uma Teoria da Justiça. São
Paulo: Martins, 2008.