Desde o pós-feudalismo, do mercantilismo e do
desenvolvimento do capitalismo, em nossa cultura a má distribuição das
riquezas, desde que haja a igualdade de oportunidades é vista de forma natural,
assim como nos acostumamos a ver pessoas com diferentes status sociais sem nenhum espanto.
A idéia é de que não há nada de errado em Macedo
ganhar vinte e cinco mil reais enquanto Pereira ganha mil e duzentos reais,
desde que Pereira tenha tido a mesma oportunidade de estar onde Macedo está
hoje. Suponhamos que a diferença de renda se deva ao fato de que Macedo é juiz
e Pereira um trabalhador rural. Isso seria aceitável se Pereira tivesse tido a
mesma oportunidade em formar-se em Direito e depois estudar para concursos, com
o que se pretende obviamente dizer que ele não fora excluído do curso de
Direito por alguma atitude discriminatória ou alguma inaptidão relevante para
tal. Vista deste modo, segundo Singer¹, a vida seria “uma espécie de
corrida na qual é justo que os vencedores levem os prêmios, desde que todos
tenham o mesmo ponto de partida. O ponto de partida igual representa igualdade
de oportunidades, e isto, dizem alguns, é o máximo a que pode chegar a
igualdade.”
Contudo, essa visão é por demais superficial e não
resiste a um exame mais aprofundado. Várias questões podem ser levantadas, como
o motivo pelo qual os resultados obtidos por Pereira não foram tão bons quanto
os de Macedo; talvez a educação de Pereira até aquele momento tivesse sido
inferior e, convenhamos, equiparar os níveis das escolas é um objetivo tão
distante no caso do Brasil que soa quase que como uma utopia, mas ainda assim é
o alicerce básico a ser defendido a todo aquele consciencioso que tiver
pretensão de atingir algum nível de igualdade de oportunidades. Admitindo-se
que Pereira de fato estudou numa escola em condições inferiores, podemos
afirmar que fica bem claro que ambos não estavam competindo em igualdade de condições
e, ainda que admitíssemos que a escola tenha sido a mesma, algumas crianças são
favorecidas pelo tipo de lar de qual provêm: livros disponíveis, quarto
silencioso que torne possível uma boa concentração, harmonia no lar, etc. são
fatores relevantes que podem explicar, por exemplo, do porquê de Macedo ter
estudado na mesma escola e ter tido resultados superiores em relação a Pereira,
que precisa dividir o quarto com mais dois irmãos e agüentar reclamações do
pai, para quem ele está perdendo tempo com livros ao invés de o estar ajudando
na lavoura.
Contudo, não é possível igualizar os pais ou os lares
– a menos que propuséssemos o abandono do contexto familiar tradicional e criar
os nossos filhos em creches comunitárias – como no sistema d'A República, de
Platão, onde as crianças sequer sabiam quem eram seus pais – isso se torna
impossível. Mesmo que atribuíssemos, fantasiosamente, que todas as crianças têm
as mesmas condições de acesso e qualidade de ensino e seus lares proporcionem
conforto e harmonia, ainda há outras objeções, como por exemplo a capacidade
cognitiva e herança genética de cada criança. Vista dessa forma, mesmo a
igualdade de oportunidades não parece atraente, haja vista que a criança
dependerá meramente do fator ‘sorte’, que os recompensará com melhores
resultados, enquanto aqueles com maiores dificuldades de concentração e armazenamento
de informações, por herança genética, por exemplo, não teriam a mesma chance.
Singer¹, questiona se “será realista almejar uma
sociedade que recompensa as pessoas segundo as suas necessidades, e não (...)
[a sua capacidade cognitiva], a sua agressividade ou outras aptidões herdadas?
Não teremos de pagar mais às pessoas por serem médicos ou advogados, ou
professores universitários, por realizarem o trabalho intelectual exigente que
é essencial para o nosso bem-estar?” Não há dúvidas de que se algum país
quisesse igualar os salários de todos os cidadãos, aqueles que ganhavam mais
iriam promover uma emigração em massa. Se algum país adotasse um sistema
desses, e os outros países não o fizessem, teríamos algo como uma “fuga de
cérebros”. No comunismo, é o problema que acontece quando ele não se dá em todo
o mundo. Na experiência soviética e nos países que, de alguma forma, se
espelham no socialismo, como Cuba, isso é um fenômeno notável. Marx esperava
que o comunismo se alastrasse por todo o mundo, e essa era a maior preocupação
de Lênin. Quando os socialistas perceberam que sua revolução não se alastrara o
suficiente, restringiram violentamente as liberdades individuais, inclusive a
de emigrar. Fizeram vigílias armadas nas fronteiras para evitar a fuga de seus
cidadãos para países que recompensavam melhor o trabalhador qualificado, bem
como para evitar o contato com os ‘inimigos’ externos².
O “socialismo em um só país” exige que a nação viva
sob constante vigília, transformando-a num campo armado, com inúmeros guardas
de fronteiras, vigiando tanto os próprios cidadãos quanto os inimigos externos.
Essas conseqüências sugerem que o socialismo não valha a pena o preço a ser
pago por ele.
¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
² SINGER,
Peter. One World: The Ethics of
Globalization. New Haven: Yale University Press, 2004.