segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A dessacralização da vida humana



A Ética abrange um campo muito vasto. A Ética Aplicada é, basicamente, a aplicação da ética e da moralidade (Singer utiliza ética e moralidade de forma indiferente) à concepção e dissecação de questões éticas voltadas a prática, como o tratamento dispensado às minorias étnicas, a igualdade para as mulheres, o uso de animais em pesquisas e para a fabricação de alimentos, a preservação do meio ambiente, o aborto, a eutanásia e a obrigação que têm os ricos em ajudar os pobres.¹
A natureza do homem e o seu comportamento vêm sendo discutidos desde o princípio da investigação filosófica. Para Immanuel Kant², a religião tem um papel necessário quando tratamos de ética, porém ela não pode ser baseada na ciência ou na tecnologia, mas na moral, por considerá-la mais segura.
A base moral da religião para Kant, por sua vez, deve ser absoluta, não proveniente de falíveis experiências sensoriais ou interferências precárias; não corrompida pelo hibridismo de uma razão falível; deve ser derivada de um eu interior, pela percepção direta e pela intuição. Nisso, temos o seu Imperativo Categórico, em que precisamos encontrar uma ética universal e necessária, que seriam princípio a priori de moral, tão absolutos e certos quanto a matemática. O imperativo moral de que precisamos como a base da religião deve ser absoluto, categórico, não importando se essa postura resulte em vantagem ou desvantagem para nós.
Para Peter Singer³, no entanto, a ética só pode ser estudada e desenvolvida em sua plenitude quando abandonamos a religião, isto é, pensemos a ética independente de valores relacionados a uma religião. Precisamos, de forma não-contingente, de afastar o pensamento religioso se quisermos ter uma visão imparcial sobre os atributos éticos, dessacralizar a vida humana e despi-la de todo e qualquer misticismo que possa embaçar a nossa visão a respeito dos nossos comportamentos.
 Do ponto de vista ético, a dessacralização da vida humana é necessária para uma abordagem imparcial e eficiente das questões práticas da Ética. Só nos despindo da influência cultural imposta pela religião predominante em nossa sociedade é que somos capazes de extrair as escamas dos nossos olhos e enxergar com nitidez o que se passa ao nosso redor.
Um embrião humano passa à existência assim que o óvulo da mulher e o espermatozóide do homem se encontram. Se o embrião é implantado na mãe, não pode-se negar o devido respeito que é devido ao mesmo, uma vez que o embrião foi introduzido no ambiente que lhe proporciona a maior chance de sobrevivência possível. Mas o que acontece se mais óvulos foram fertilizados que poderiam ser reimplantados? O que seria feito a eles? Eles seriam congelados? Mas e se o casal que cedeu o óvulo e o espermatozóide não deseje que, em nenhum momento, os outros óvulos fertilizados sejam implantados na mulher? (Talvez o primeiro embrião tenha se desenvolvido com sucesso e eles não queiram mais filhos.) E se, em não querendo utilizar os demais embriões, o casal não aprecie a idéia de utilizar o material genético deles para um outro casal? Os embriões deveriam permanecer congelados para sempre? Qual o objetivo disso? Ou poderiam esses embriões excedentes simplesmente serem abandonados e descartados?
Muitas pessoas considerariam essas questões desconcertantes. Não vendo condições de respondê-las, eles levantariam suas mãos e diriam, “São todas questões pertinentes ao julgamento individual.” A intenção nesse ponto é mostrar que há respostas racionais a estas questões, que deveriam carregar consigo a convicção para todo aquele que aceita uma premissa inevitável: a de que não é errado destruir o óvulo e o espermatozóide antes de eles terem se unido. Na base dessa premissa, nós devemos perguntar se não há uma obrigação moral para preservar a vida do embrião. A princípio, o argumento de Singer se aplica, especificamente, aos mais novos tipos de embrião produzido pelos programas de fertilização in vitro (ou apenas FIV, nas iniciais em português). Noutras palavras, ele fala sobre um embrião que se desenvolveu por apenas algumas horas ou no máximo um dia ou dois. Só terá se dividido em poucas partes: duas, quatro, oito ou dezesseis células. (Tecnicamente, chamamos “zigoto”, mas continuarei me referindo à esse conjunto de células com o termo “embrião.”) Nesse estágio, é claro, o embrião não tem um cérebro ou mesmo um sistema nervoso. O embrião tampouco pode sentir alguma coisa ou ser minimamente consciencioso. Conseqüentemente, o que será discutido sobre esse tipo de embrião não tem nenhuma aplicação necessária a um embrião numa fase ulterior do desenvolvimento, por exemplo, num estágio de desenvolvimento o qual o embrião já possui um cérebro e pode sentir dor.
O argumento singeriano para o embrião nessa fase de desenvolvimento começa partindo da premissa de que não é errado destruir o óvulo ou o espermatozóide – os gametas, como são conhecidos – antes de os mesmos terem se unido. Não há alguém em sã consciência que possa seriamente afirmar que um espermatozóide ou um óvulo possuem um status moral antes da junção dos mesmos e a conseqüente fertilização e de que por isso não possam ser “descartados”.³ É o argumento da Potencialidade. Um feto seria um ser humano em potencial e, portanto, teria o mesmo direito à vida que um adulto saudável normal. Contudo, ao investigar tal argumentação, podemos concluir que não pode ser válida, pois assim como o embrião, o óvulo e o espermatozóide também são seres humanos em potencial. E, obviamente, tanto óvulos quando espermatozóides são inutilizados aos montes no período vital de um indivíduo, e nem por isso esse fato levanta alguma polêmica.
A reivindicação de que a vida humana já existe a partir do momento da concepção é freqüentemente utilizada como um argumento contra o aborto. Não estou considerando aqui que o aborto deva ser praticado, mas antes de tudo o status moral do embrião. Não obstante, a reivindicação é relevante para a nossa abordagem sobre o tema, pois se supormos que a vida humana se caracteriza no momento da concepção, igualmente precisaríamos aceitar que o embrião tem o mesmo direito básico à vida que um ser humano normal após o seu nascimento.
Segundo Singer³, em tradução livre,

“Para avaliar a reivindicação de que a vida humana existe a partir da concepção, é necessário distinguir dois sentidos possíveis do termo ‘ser humano.’ Um sentido é estritamente biológico: um ser humano é um membro da espécie Homo sapiens. O outro é mais restrito: o ser humano é um ser que possui, ao menos no nível mínimo, as capacidades distintivas da nossa espécie, o que inclui consciência, a habilidade de perceber os outros ao redor, para poder relacionar-se com os mesmos, talvez até mesmo racionalidade e consciência de si”.

Quando opositores do aborto dizem que o embrião é um ser humano vivo, fruto da concepção, tudo o que eles podem tentar dizer é que o embrião é um espécime vivo de Homo sapiens. Isso é tudo que podem afirmar baseados em fatos científicos. Mas qualquer ser humano, só por ser da espécie humana, tem o direito à vida? Isso não faz sentido.
Para reivindicar que todo ser humano tem direito à vida, somente por pertencer à espécie Homo sapiens é fazer com que a espécie do indivíduo seja a base dos direitos. Isso é tão indefensável quanto à alegação de que a raça é a base dos direitos. Esta é a forma de preconceito que Singer³ refere-se como “especismo” – um preconceito a favor de nossa espécie, simplesmente por que somos membros da mesma espécie. A lógica deste preconceito corre em paralelo com a lógica racista, que promove o preconceito em relação às demais raças em favor dos membros da sua própria raça, simplesmente por pertencerem a elas.
Se nós atribuirmos direitos nas áreas moralmente defensáveis, nós devemos nos basear em alguma característica moral relevante dos seres a quem nós atribuímos tais direitos. Exemplos de tais características factualmente relevantes deveriam ser consciência, autonomia, racionalidade, etc., mas não uma raça ou uma espécie.
Outro argumento freqüentemente utilizado pelos opositores do aborto é o da Unicidade do embrião. Alguns objetarão que há um sentido em que tanto o embrião quanto o óvulo e o espermatozóide, considerados separadamente, têm algum potencial, nomeadamente o potencial de desenvolver-se num ser humano adulto. Ainda, eles dizem, há uma diferença entre essas duas formas de potencial. No caso do óvulo e o esperma separados, a genética natural do ser humano único que poderia existir ainda será determinada. Não temos como afirmar quantos dos milhares de espermatozóides em uma gota de sêmen fertilizará o óvulo. A constituição genética única do embrião, por outro lado, é determinada para sempre.
Poderia essa diferença prover uma razão para dar ao embrião um maior status em relação ao óvulo e ao espermatozóide? Certamente não, pois a diferença ainda não nos mostra que o embrião tem um potencial diferente em relação ao óvulo e ao espermatozóide. Tanto o óvulo quanto o espermatozóide têm o potencial de transformarem-se num ser humano maduro.
Não há seres humanos geneticamente indeterminados, e cada ser humano geneticamente determinado é único, à exceção de gêmeos idênticos, trigêmeos, etc. Assim, a unicidade do embrião não adiciona nada à sua potencialidade de tornar-se humano. Nossa inabilidade em dizer qual dos espermatozóides irão fertilizar o óvulo não devem fazer alguma diferença nesse julgamento.
Há diferentes abordagens sobre questões éticas entre um profissional de Filosofia especializado em Ética em relação aos médicos que tratam de questões éticas nas publicações relacionadas à Medicina. O profissional de Filosofia que estuda Ética, que particularmente pode ser chamada nesse caso de “filosofia moral aplicada”, pode muito bem discutir com seus estudantes e colegas de profissão os problemas morais que os médicos encontram no decorrer da prática médica. Uma vez que o filósofo profissional é especialmente treinado a pensar sobre estes assuntos e tem todo o tempo necessário à sua disposição para fazê-lo, alguém poderia cogitar que o filósofo poderia ser capaz de prover considerável assistência ao médico, cujo treinamento e tempo são devotados mais à prática médica do que à filosofia moral. Sabemos que, salvo algumas exceções, não é isso que acontece. Médicos discutem seus dilemas éticos em suas respectivas publicações e filósofos detêm-se às publicações filosóficas; as referências em cada caso permanecem no ciclo dos colegas de profissão do respectivo autor. Tudo isso não é só um problema acadêmico antigo, de cada profissional não ter o hábito de olhar além de sua própria disciplina; qualquer um que se dispuser a ler tanto publicações filosóficas quanto médicas que contenham exames dos problemas em ética médica, mal poderá evitar perceber que há uma abertura fundamental entre tais discussões, que são muito mais relevantes do que o fato de estarem expostas em tipos diferentes de publicações.
Há também diferenças nas pressuposições empregadas e nos problemas que são discutidos. Por exemplo, em publicações filosóficas (como por exemplo a de Norman Ford, intitulada When I did Begin?, de 1988) nós podemos encontrar artigos em que é argumentado, seriamente e num raciocínio plenamente plausível, que um recém-nascido normal saudável não tem direito à vida e a esse respeito, na mesma posição de um feto. Quando fala-se em “não ter direito à vida” não se está dizendo que o feto deva ser destruído, mas sim que ele não possui um status moral a ponto de tornar-se errado fazê-lo. Médicos, por seu turno, estão tão distantes de considerar esta posição que eles consideram, ainda, sérios dilemas éticos questões tais como: “O que poderia ser feito com um paciente que nunca recobrará sua consciência?” ou, “Devem os pais terem a opção de decidir o quão longe um médico deve ir ao utilizar todas as técnicas disponíveis para salvar a vida de um bebê desesperançosamente retardado que, adicionalmente, tem um defeito congênito no coração?”4
Há muitos motivos do porquê de as questões éticas de filósofos e médicos praticantes serem tão distintas. Uma razão importante é que eles são afetados pelas leis de diversas maneiras, tornando mais difícil para os médicos livrarem-se de questões éticas teoricamente mais simples. O ocupado médico, que deveria concentrar-se muito mais em medicina do que em filosofia, volta-se aos dilemas éticos tão-somente quando eles o confrontam. Ele tende a não levantar questões que nunca deverá enfrentar na prática, uma vez que ele tem problemas suficientes para pensar e não há uma razão forte para ele vislumbrar questões hipotéticas. O filósofo, obviamente, está numa posição bem diferente. Despreocupado sobre questões mundanas regidas pela lei, ele volta sua atenção para casos que invocam princípios morais básicos. Se casos reais não oferecem uma finalidade, ele está livre para adentrar em questões hipotéticas, aprofundar as possibilidades e elucidar seu entendimento.
Segundo Singer³, em tradução livre,

“Enquanto nós podemos concordar que em geral um médico deva obedecer à lei, há nisso uma tendência a não perceber a diferença entre esse ponto de vista e a idéia de que a lei e os padrões morais que o personificam são um ponto de partida indisputável para um debate ético adicional”.

Por que abordar a forma como os médicos lidam com questões éticas nesse capítulo? Para Peter Singer³, em tradução livre, “(...) as atuais atitudes na ética médica são ou claramente incompatíveis ou então culpadas por uma forma crua de discriminação que não são mais defensáveis do que a discriminação racial.” A minha proposta neste tópico é confrontar justamente estas doutrinas convencionais da moral: a doutrina da sacralização da vida humana. Há um risco em concentrar-se nessa abordagem, como o de ser taxado como mais um pretenso filósofo que está completamente alheio ao mundo de pessoas reais. O filósofo – assim como o poeta – é visto pelo senso comum freqüentemente como um nefelibata, quando o propósito da filosofia é justamente aproximar aquele que se entrega às suas entranhas à verdade; isto é, resgatar o homem da alienação proveniente dos sentidos e das emoções, convidando-o ao que é factual, por intermédio da razão e da lógica argumentativa. Uma das “tarefas” da filosofia é justamente transformar a mera capacidade de raciocínio – que é apenas em potência – em ato, isto é, em raciocínio efetivo.  Só nesse contexto, podemos passar de meros reprodutores de dogmas a livres-pensadores, desprovidos da maior parte dos preconceitos instintivos.
Peter Singer, baseado nos argumentos de que questões éticas precisam ser abordadas por especialistas no assunto, procura forçar os envolvidos na medicina a reconsiderar os fundamentos das decisões tomadas por eles; fundamentos estes que dão asas para o tipo de inconsistência ou discriminação a que ele se refere que estão em necessidade urgente de reconsideração e, para ele, o cerne principal deste problema é justamente o mito, ou doutrina, da sacralidade da vida humana.
As pessoas costumam dizer que a vida é sagrada, mas sequer pensam de fato no que estão dizendo. Não querem afirmar, como as palavras implicariam, que toda forma de vida é sagrada. Se assim fosse, matar – ou comer – um porco, derrubar uma árvore ou comer uma alface seria tão contrária à sua doutrina quanto o assassinato de um ser humano normal. Então, quando no contexto da ética médica, as pessoas falam na sacralidade da vida, na verdade querem referir-se, desde o feto à vida humana; e é esta doutrina que será discutida a partir de agora.
Nem todos aqueles que falam sobre uma “sacralidade da vida humana” são religiosos, e dentre aqueles que são religiosos, em muitos casos a afirmação de que a vida é sagrada independe do ponto de vista estritamente religioso, ao menos diretamente. No contexto secular em que os dilemas éticos da medicina são comumente discutidos hoje, aqueles que falam de uma condição sagrada da vida humana estão tentando dizer, essencialmente, que a vida humana tem algum valor especial, algo único e intrínseco à nossa espécie. Uma implicação crucial dessa asserção é a idéia que há uma diferença radical entre o valor de uma vida humana e o valor da vida de algum outro animal – uma diferença não meramente de grau, mas de qualidade ou de tipo, como se houvesse um verdadeiro abismo entre a espécie humana e as demais.
O que será criticado aqui é essa idéia de que a vida humana tem um valor único. Poderia ser correto tratar um tipo de ser de uma forma e outro tipo de ser de outra maneira? É claro que sim, mas isso depende dos atributos relevantes de cada ser, ou seja, depende do tratamento em questão, e não pela caracterização da espécie. Devemos encorajar, é claro, que membros de nossa espécie aprendam a ler e não o faríamos com os cães, pois a diferença é relevante para cada objetivo de vida. Contudo, se ensinarmos pessoas a ler baseando-se na sua etnia, dando apenas a determinada etnia o conhecimento – tornando-o um privilégio – seria uma discriminação arbitrária baseada na raça. Mas e se compararmos crianças severamente e irreparavelmente retardadas com animais não-humanos como porcos, cães e macacos? Acredito que somos forçados a concluir que, ao menos em alguns casos, a criança defeituosa não possui nenhuma característica ou capacidade que não são também possuídas, em grau igual ou maior, por vários animais não-humanos. Capacidades de seres complexos de diversas espécies, tais como a de sentir dor, agir intencionalmente, resolver problemas, relacionar-se e comunicar-se com outros seres; assim como também são factuais características como autoconsciência, noção do tempo, memória, interesses por outros seres e curiosidade. Em todos os exemplos das espécies anteriormente citadas, membros adultos delas têm certamente no mínimo as mesmas capacidades de um ser com sérios problemas mentais de nossa própria espécie. Se for o caso de alguém ainda não ter informações suficientes sobre pesquisas que revelam as capacidades de variadas espécies de animais, é válido noticiar aqui que determinados chimpanzés, por exemplo, foram ensinados a comunicarem-se através das linguagens dos sinais, e diversas espécies diferentes da nossa mostraram uma memória bem mais apurada que a do Homo sapiens. Os testes com os chimpanzés podem provar tanto que os mesmos possuem consciência de si quanto a idéia de tempo.
Quando decidimos tratar um ser – o infante severa e irreparavelmente retardado – de uma forma, e o outro ser – o porco ou o macaco – de outra forma, não parece haver nenhuma diferença entre os dois de que nós poderíamos apelar em defesa de nossa discriminação. Claro que há o fato de um ser membro de nossa espécie e o outro ser membro de uma outra espécie, mas isso tampouco pode justificar nossa discriminação. Tal discriminação “(...) é precisamente o tipo da diferença arbitrária que o tipo o mais cru e o mais evidente do racista tenta usar para justificar a discriminação racial.”³
A linguagem simbólica era, até pouco tempo atrás, o último bastião do que diferenciava o homem em relação aos outros animais, depois da queda do suposto exclusivismo cultural dos seres humanos. Contudo, mesmo a linguagem simbólica já foi observada em animais não-humanos, como observa Renato Sabbatini, um neurocientista do comportamento, com um doutorado pela Universidade de São Paulo, e um renomado divulgador científico. Ele objeta que “(...) a inteligência não é uma propriedade única aos seres humanos. A inteligência humana parece ser composta de várias funções neurais correlacionadas e que cooperam entre si, muitas das quais também estão presentes em outros primatas, tais como destreza manual, visão colorida estereoscópica altamente sofisticada e precisa, reconhecimento e uso de símbolos complexos (coisas abstratas que representam outras), memória de longo prazo, etc. De fato, a visão científica corrente é que existem vários graus de complexidade da inteligência presente em mamíferos, e que nós compartilhamos com eles muitas das características que previamente pensávamos serem exclusivas do ser humano, tal como linguagem simbólica, que se comprovou também ser possível em antropóides. O estudo da evolução da inteligência humana forneceu evidências de que parece haver [em determinados animais não-humanos] uma ‘massa crítica’ de neurônios de ordem a conseguir consciência semelhante à dos humanos, linguagem e cognição, mas que estas propriedades da mente parecem estar já presentes em outras espécies com cérebros altamente desenvolvidos, embora em forma mais primitiva ou reduzida”5. Quando nos baseamos nas evidências científicas, fica cada vez mais difícil para os especistas, ou seja, aqueles que discriminam com base na espécie, justificarem seus atos.
A doutrina da sacralidade da vida humana, como é normalmente entendida, tem como seu núcleo a discriminação com base na espécie e nada mais. Aqueles que desposam a doutrina não fazem nenhuma distinção, em sua oposição em matar, entre humanos normais que se desenvolveram a um ponto intelectual o qual nenhuma outra espécie de animal pode atingir, ou humanos numa condição insana, ou fetos humanos, ou crianças humanas, ou humanos com o cérebro severamente danificado. Um paciente humano terminal poderá, assim, agonizar por meses até que sua morte venha à tona, enquanto um animal irremediavelmente ferido, numa clínica veterinária, por não possuir o status da vida sagrada, tem o benefício de ver sua agonia dolorosa prontamente terminada, por intermédio do sacrifício.
O desafio das doutrinas teológicas que culminaram na doutrina da sacralidade da vida humana foi, em termos gerais, bem-sucedido. Contudo, o desafio das atitudes morais em si têm feito um progresso lento. Singer³ afirma, em tradução livre:

“(...) eu devo mencionar uma objeção principal, mais prática do que teórica, da minha proposta que rejeita a idéia da sacralidade de vida humana. Algumas pessoas dizem que enquanto a doutrina deve ser baseada numa arbitrária e injustificada distinção entre a nossa própria espécie e as outras espécies, essa distinção ainda serve para um propósito útil. Uma vez que abandonemos essa idéia [da sacralidade da vida humana], esta objeção segue, nós embarcaríamos numa inclinação escorregadia que poderia conduzir a uma perda de respeito pelas vidas de pessoas comuns e, eventualmente, a um aumento na criminalidade ou à matança seletiva de minorias raciais ou de políticos indesejáveis. Assim, a sacralidade da vida humana valeria à pena ser preservada por que a distinção que faz, mesmo se sem sentido em alguns pontos, é próxima o bastante a ser uma discriminação defensável por valer a pena preservar”.

A objeção acima mais parece uma maneira desesperada de contra-argumentar, uma vez que admite que a doutrina não é sólida o bastante, mas não importa por ser supostamente útil. O fato é que não há evidências de que, se aceitarmos que o valor da vida de um membro de nossa espécie não possui circunstâncias especiais, haverá qualquer tipo de efeito contagiante em nossas atitudes em matar em outras circunstâncias. Evidências históricas sugerem o contrário. Gregos antigos matavam recém-nascidos em alguns casos, mas parecem ter sido pelo menos tão escrupulosos sobre a tomada das vidas dos seus concidadãos quanto cristãos medievais ou estadunidenses modernos. Nas sociedades esquimós, matar os pais envelhecidos é tradição. Colonizadores brancos australianos atiravam em aborígenes nativos por esporte, como o fazem hoje seus descendentes com os cangurus, sem o efeito discernível na seriedade com que a matança de um homem branco era considerada. Se separarmos nossas atitudes com referência na etnia – por exemplo, os europeus e os aborígenes – em categorias morais distintas, sem transferir nossas atitudes de um grupo a outro, não há certamente muita dificuldade em separar também bebês humanos com sérios e irreparáveis retardamentos mentais a de um ser humano adulto normal. Mais ainda, qualquer um que pense que há um risco de más conseqüências caso abandonemos a doutrina da sacralidade humana, deve ainda considerar a possibilidade de encontro ao dano real a que a doutrina promove ascensão, que é prejudicar ambos os infantes: aqueles cuja miséria é desnecessariamente prolongada, e aos não-humanos cujos interesses são ignorados.
Ao ser analisado racionalmente, a sacralidade humana cai por terra assim que é minimamente questionada. Não há quaisquer evidências de que por termos determinadas características, somos senhores do mundo ou temos direitos e privilégios que membros de quaisquer outras espécies se privem. Devemos levar nossa cultura para perto do microscópio: olhando por ele, vemos que os embriões das mais diversas formas de vida são iguais.

¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
² KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martin Claret, 2003.
³ SINGER, Peter. Unsanctifying Human Life: Essays on Ethics. Oxford: Blackwell, 2001.
4 HARE, R. M. Abortion and the Golden Rule. Philosophy and Public Affairs, 4 (1975), pp. 201-22.
5 SABBATINI, R. M. E. The Evolution of Human Intelligence. Brain & Mind, 12, 2001.

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