Motivos que levariam as mulheres ao aborto, segundo pesquisa nos Estados Unidos |
Desde Aristóteles, a
Lógica tem fundamentado os argumentos filosóficos para atestar a veracidade de
determinadas assertivas. O argumento básico contra o aborto, colocado de uma
maneira formal, ficaria mais ou menos assim:
Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.
Com novas tecnologias,
questões éticas e morais precisam ser constantemente repensadas. Hoje se pode
detectar futuros problemas no embrião por um exame radiológico, que denuncie a
presença de anormalidades genéticas, sendo rejeitados sempre que essas
possíveis anormalidades são descobertas. O doutor Robert Edwards¹ afirmou que
vai ser cientificamente possível desenvolver embriões in vitro a tal ponto que, cerca de 17 dias depois da fertilização, eles
desenvolvam células sangüíneas indiferenciadas que possam ser usadas para o
tratamento de várias doenças sangüíneas não letais. Muitos outros doutores,
especulando sobre avanços futuros, já se perguntaram se algum dia chegaremos a
ter bancos de embriões ou fetos que possam fornecer órgãos aos que dele necessitem.
Sobre a condição do feto
recém-fertilizado, Singer objeta o que
“O aborto e as experiências destrutivas com embriões
colocam questões éticas difíceis, pois o desenvolvimento do ser humano é um
processo gradual. Se considerarmos o óvulo fertilizado imediatamente depois da
concepção, será difícil ficar abalado com sua morte. O óvulo fertilizado é uma
célula única. Depois de vários dias, ainda não deixou de ser um minúsculo grupo
de células que não possuem uma única característica anatômica do ser em que
mais tarde irão transformar-se. Nesse estágio, as células que vão formar o
embrião propriamente dito são indiscerníveis das que vão formar a placenta e o
saco amniótico”.¹
Factualmente, nem mesmo
podemos saber se após duas semanas formar-se-ão um ou dois indivíduos, pois a
separação ainda poderá ocorrer, levando à formação de gêmeos idênticos. Nesse
período, surge tão-somente uma ‘linha primitiva’, onde posteriormente
desenvolver-se-á a coluna vertebral. Nesse estágio, igualmente, é quase óbvio
que o embrião não seja capaz de sentir dor ou tenha algum tipo de consciência.
No outro extremo, situa-se um ser humano adulto, com todos os seus atributos, e
“matar um ser humano adulto equivale a cometer um assassinato”¹. A
não ser em casos muito específicos, como a da pena de morte, por exemplo,
trata-se de um ato universalmente condenável. A problemática que precisamos
tentar resolver é justamente delimitar essa linha divisória que separe o óvulo
fertilizado e o ser humano adulto, e o porquê de ser tolerável matar um e
execrável matar o outro. O embrião tem em relação à vida uma possibilidade, haja vista que toda sua
formação dependerá de que diversos eventos sejam bem-sucedidos, ao passo que o
ser humano adulto saudável tem um valor intrínseco em relação à vida como um
bem já consolidado, o que dota sua existência de um direito natural à vida. A
percepção do status moral de cada um desses casos é um dos temas centrais do
presente artigo: a condição que dá a cada um – ou não – o direito à vida.
A reação de parte dos
filósofos éticos e, em termos gerais, a reação dos liberais tradicionais,
defensores do aborto, consiste em negar a segunda premissa do argumento com o
qual iniciei este tópico, isto é, o foco de discussão é se um feto é um ser
humano. Como visto anteriormente, se analisarmos estritamente a condição do ser
humano como pertencente à espécie Homo
sapiens, tal refutação estaria incorreta, e os opositores do aborto
poderiam regozijar-se triunfantes. Contudo, precisamos nos dotar da coragem
necessária para aprofundar essa relação com o que é factualmente relevante, já
que não há sentido em tornar sagrada a vida humana simplesmente por pertencer à
espécie humana. O que torna o status moral do ser humano adulto diferente, são
características relevantes, mencionadas na postagem anterior intitulada “Condições de igualdade” que não dependem da mera crença em alguma
exclusividade por intermédio de intervenções divinas, como visto na postagem "A dessacralização da vida humana".
A dificuldade, nesse
caso, é apontar alguma linha divisória moralmente significativa. Um ponto em
que um feto passe a consistir num ser humano. “A menos que tal linha exista,
dizem os conservadores, devemos conferir ao embrião o status de criança, ou fazer com que esta tenha o seu status
reduzido ao de um embrião; mas ninguém quer permitir que as crianças sejam
mortas a pedido de seus pais e, assim, o único ponto de vista defensável está
em assegurar ao feto a proteção que asseguramos à criança”¹.
As supostas ‘linhas
divisórias’ mais comumente sugeridas são o nascimento, a viabilidade, os
primeiros movimentos do feto e o surgimento da consciência. Por se tratar de
algo absolutamente concreto, o nascimento é a linha divisória mais visível,
além de ajustar-se aos nossos sentimentos. Os animais (humanos ou não-humanos)
têm uma característica proveniente da evolução e conservação da espécie que
tende a proteger um membro recém-nascido, salvo em casos específicos como por
exemplo o do gorila – que pratica o infanticídio com filhotes de outros machos
para, provavelmente, mostrar às fêmeas que elas não estão seguras o bastante
com o pai dos filhotes, bem como busca disseminar os seus próprios genes.² Obviamente, ficaríamos muito menos perturbados com a destruição de um
feto do que de um ser que podemos ver, ouvir e acariciar. Porém, abstendo-se do
fator emocional, será que o nascimento é, por si só, suficiente para nos dar as
diretrizes se determinado ser poderá ou não ser morto? Os conservadores
poderiam resolver essa questão argumentando que o feto/bebê é a mesma entidade
independentemente se está dentro ou fora do útero. O fato de podermos vê-la não
altera sua condição, pois tal entidade possui o mesmo grau de consciência e a
mesma capacidade de sentir dor. Contudo, para Singer, “sob esses aspectos,
um bebê prematuro pode ser menos
desenvolvido do que um feto que se aproxima do fim de sua duração normal.
Parece estranho admitir que não podemos matar o bebê prematuro, mas que podemos
matar o feto mais desenvolvido”¹. Isso se dá pela nossa ligação emocional
desenvolvida no ato do nascimento. Portanto, a mera localização de um ser – se
está dentro ou fora do útero – não pode ser um argumento plausível em relação
ao julgamento do seu direito à vida, e “não deveria configurar tanta diferença
quanto ao erro que consiste em matá-lo”¹. E o fato é que o aborto
é legalizado em quase totalidade do mundo Ocidental, enquanto o infanticídio é
considerado assassinato nestes mesmos países, ainda que inexplicavelmente, em
muitos casos simplesmente deixar o recém-nascido defeituoso morrer por
desidratação e desnutrição é uma simples decisão dos pais, como veremos
adiante. O Brasil é um dos países mais conservadores em relação ao aborto, mas
ainda assim o permite por lei em casos específicos, como o de estupro e de
má-formação embrionária.
A lista dos países, por rigor da lei, em relação ao aborto (Clique para aumentar a nitidez) |
Há outro ponto digno de
consideração em relação à essa questão da viabilidade como ponto de
desligamento, afinal, o estágio em que o embrião é capaz de sobreviver fora do
corpo da mãe está relacionado com o avanço das tecnologias e,
interdependentemente, da medicina. Hoje um feto saudável que nasça 3 meses
prematuro dificilmente sucumbirá, ao passo que há trinta anos geralmente
aceitava-se que um bebê nascido prematuramente 2 meses dificilmente teria
condições de sobrevivência. Por conseguinte, não é razoável afirmar que hoje é
moralmente inaceitável abortar um feto saudável aos seis meses de idade, mas
que isso poderia ser feito há trinta anos sem configurar-se em um erro, de
forma que a viabilidade não pode ser considerada como a linha divisória do
status moral do embrião.
O status moral não pode
ser uma variável ao sabor do tempo/tecnologia ou da localidade – haja vista que
uma mulher da Somália ou do Chade continua sem acesso às tecnologias modernas –
mas algo que deva ser buscado via racional para estabelecer uma constante. Alguns
liberais poderiam responder à essa questão de forma simplificada, alegando que
pelo fato de o feto ser completamente dependente da mãe para sua sobrevivência,
ele não teria o direito à vida. Para Singer¹, contudo,
“(...) [nós] não defendemos a idéia de que a total dependência
de uma outra pessoa signifique que essa pessoa pode decidir se é preciso viver
ou morrer. Se vier a nascer numa região isolada onde não exista nenhuma outra
mulher que possa amamentá-lo, nem recursos para que possa ser alimentado com
mamadeira, um recém-nascido é uma criatura totalmente dependente de sua mãe.
Uma velha pode ser totalmente dependente de seu filho que toma conta dela, e um
caminhante que quebra a perna a cinco dias de caminhada da estrada mais próxima
pode morrer se o seu companheiro não vier salvá-lo. Não pensamos que, nessas
situações, a mãe possa tirar a vida de seu bebê, o filho a de sua velha mãe, ou
o caminhante a do seu companheiro ferido.”
Isso nos leva à conclusão
de que não faz sentido objetar que a dependência que o feto inviável tem de sua
mãe possa dá-la o direito de matá-lo. A dependência, portanto, não justifica
que se faça da viabilidade a linha divisória, e nos continua sendo difícil
saber o que pode justificá-la. Se nem o nascimento nem a viabilidade são
suficientes para o desígnio de um status
moral significativo, menos ainda podemos esperar do “terceiro candidato”: os
primeiros sinais de vida. Para a teologia cristã, é nesse momento em que o feto
‘ganha’ alma. Se isso fosse factual, esse evento seria de extrema importância,
já que, para esses teólogos, é a alma que diferencia os homens dos outros
animais. Sabemos que, infelizmente, essa suposição não passa de uma antiga
superstição sem fundamento algum, e já foi rejeitada até mesmo pelos teólogos
católicos modernos. O mero fato de um feto fazer (ou não) um movimento não pode
ser o que define, com seriedade, se alguém passa a ter o direito à continuidade
da vida. Afirmar isso seria o mesmo que concluir que os paralíticos não possuem
o direito à vida.
Não podemos pautar o
conhecimento científico ou filosófico por doutrinas religiosas que baseiam suas
explicações em não explicar nada (dando-lhe a alcunha de ‘fé’ para essa
ausência de sentido em seus levantamentos doutrinários), de modo que perceber a
ausência de sentido em explicações desse tipo elimina naturalmente a hipótese
da linha divisória do status moral
baseando-se nos primeiros sinais de vida.
Um argumento
considerável, no entanto, é a questão da consciência. Saber quando um embrião
passa a ter consciência relaciona-se com a obtenção de um sistema nervoso
central, e a probabilidade de sentir prazeres e dores, e isso é algo concreto e
relevante sobre a questão da importância moral. Apesar disso, em relação ao
aborto, tanto conservadores quanto liberais não têm se detido nesta questão,
mencionando a condição de consciência do feto. Os opositores do aborto costumam
apelar para laços sentimentais, causando choque e mostrando filmes como “Grito
Silencioso” para convencer aqueles que não possuem ainda uma posição definida
sobre o assunto. Porém, não podemos pautar nossos juízos apenas pela
emotividade, haja vista que a razão é a primeira que deve ser consultada para a
obtenção de conclusões satisfatórias. Com efeito, os adversários do aborto
comumente defendem suas posições apaixonadamente, e por isso acreditam que
desde o momento da concepção o ser humano tem direito à vida, e isso sequer
passa pela questão da consciência. Por outro lado, para os defensores do
aborto, considerar a consciência a linha divisória do status moral que provê o direito à vida pode ser uma estratégia
arriscada. Estudos recentes mostram que o movimento já se evidencia na sexta
semana pós-fertilização, e outros constataram a existência de alguma atividade
cerebral, ainda que primitiva, já na sétima semana e isso sugere que o feto
talvez já seja capaz de sentir dor nesse estágio inicial de gravidez.
Infelizmente, ainda não
há uma linha divisória capaz de resolver sem objeções contrárias relevantes o
problema da fronteira em que o status
moral do embrião se torna relevante e dá ao mesmo o direito à vida. Não é
possível, ao menos por enquanto, determinar um estágio do desenvolvimento “que
possa arcar com o peso de separar os que têm direito à vida daqueles que não o
têm, de um modo que mostre, claramente, que os fetos pertencem à última
categoria quando estão no estágio de desenvolvimento em que a maior parte dos
abortos é feita. Os conservadores pisam em terreno firme quando insistem em que
o desenvolvimento que vai do embrião ao recém-nascido é um processo gradual.”¹
Os liberais, em linhas
gerais, não discordam da afirmação conservadora de que o embrião é um ser
humano inocente, “mas afirmam que, não obstante, o aborto é admissível.” Uma
dos argumentos liberais mais usuais, levada recorrentemente aos meios de
comunicação inclusive no último processo eleitoral para presidente do Brasil, é
o de que independentemente de o aborto ser ou não legal, proibi-lo tão-somente
levará que as mulheres que queiram abortar o façam clandestinamente, recorrendo
desesperadamente a qualquer abortador desqualificado “de fundo de quintal”,
correndo sérios riscos de saúde e até mesmo de vida, ao passo que se fosse
possível procurar um médico para fazer aborto, esse episódio seria tão simples
como uma outra operação qualquer.
Outro argumento liberal
usual é sobre as leis que regem o aborto e não sobre a ética do aborto. O ponto
de vista de que “Deve continuar existindo uma esfera da moralidade e da
imoralidade pública que, grosso modo,
nada tem a ver com a lei.” (Comissão do governo britânico sobre
homossexualidade e prostituição). Tal ponto de vista é comum entre os
pensadores liberais e suas origens podem ser atribuídas a Sobre a liberdade, de John Stuart Mill³, que afirma:
“(...) o único objetivo em nome do qual o poder pode
ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada,
contra sua vontade, é o de impedir que os outros sejam prejudicados (...) Ele
não pode ser legitimamente forçado a agir ou a abster-se de agir porque será melhor
que o faça, porque assim será mais feliz, porque, na opinião dos outros, agir
desse modo seria mais sensato, ou mesmo mais certo”.
Segundo as feministas, a
mulher tem o direito de decidir o que fazer com o seu próprio corpo, e negar
isso seria um ato de violência sobre seu livre-arbítrio de fazê-lo. Esse é o
último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o
feto é um ser humano inocente. Tal pensamento foi, segundo Singer,
“elaborado por filósofos norte-americanos simpáticos à causa feminista”.¹
Voltando-nos às premissas
que abriram essa postagem, já podemos perceber que a suscetibilidade da
primeira premissa do argumento anti-aborto está no fato de fundamentar-se em
nosso status especial da vida humana
que, como vimos, é falacioso: ser “humano” é um termo que “se subdivide em duas
noções específicas: ser um membro da espécie Homo sapiens e ser uma pessoa”. Singer utiliza o
termo “pessoa” para designar qualquer entidade com as características básicas e
relevantes de direito à vida, como consciência de si, aspirações, capacidade de
sentir prazer ou dor, etc.¹ Se “humano” for tomado como equivalente de “pessoa”,
a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é
claramente falsa, pois não se pode, plausivelmente, argumentar que o feto seja
um ser humano. Por outro lado, se “humano” for tomado apenas como o significado
de “membro da espécie Homo sapiens”,
então a defesa conservadora da vida do feto tem por base uma característica que
carece de significação moral e, portanto, a primeira premissa é falsa. Nos dois
casos, o argumento é inválido, portanto.
Um argumento amiúde
utilizado pelos conservadores é o argumento da Potencialidade. Ele baseia-se nas seguintes premissas:
Primeira premissa: É errado matar um ser humano em potencial.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em
potencial.
Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.
A primeira premissa
afirma que qualquer ser humano em potencial tem o direito à vida. Como já
analisado anteriormente, fica evidente a fragilidade de tal premissa; por
exemplo, se calculássemos todos os seres humanos em potencial em relação às
suas respectivas probabilidades de nascimento, chegaríamos à proporções
astronômicas, de alguns milhões para um. Um espermatozóide – um ser humano em
potencial – compete com milhões de semelhantes para atingir o privilégio de
chegar ao óvulo, que por sua vez, também raramente é fecundado, levando-se em
conta a quantidade de óvulos que é descartado pelo corpo da mulher durante sua
vida. Estes fatos simples evidenciam que o argumento da potencialidade não pode
ser considerado. Contudo, a segunda premissa do argumento é mais forte do que a
segunda premissa do argumento anterior. Mesmo que seja problemático dizer se o
feto é um ser humano (isto vai
depender do que queremos dizer com o termo), é inegável que o feto é um ser
humano em potencial. Todavia, a fragilidade da primeira premissa torna
impossível uma conclusão lógica confiável.
Numa visão utilitarista,
um embrião identificado como defeituoso não só pode como deve ser substituído
por um embrião saudável. Vamos imaginar o exemplo de um casal que se disponha,
por diversas razões, (seja por causa da conciliação do cuidado com os filhos e
o trabalho, a viabilidade econômica, etc.), a ter somente dois filhos. O
segundo filho, ainda um embrião desenvolvendo-se no útero da mãe, foi
identificado com má-formação. Esse embrião, caso seja aceito e consiga
sobreviver após o nascimento, certamente levará uma vida de miséria pessoal e
privações, pois não pode desenvolver habilidades inerentes à condição de um ser
humano adulto normal. A decisão de que este embrião devesse vir à vida,
impossibilitou ao casal que tivesse, numa segunda oportunidade, a chance de
conceber um filho plenamente saudável e com muito mais chances de possuir uma
vida feliz. Isso sem contar com o desgaste emocional que ele evitaria aos seus
pais e outros familiares. Também se sabe que os custos para manter um filho com
síndrome de Down, por exemplo, são astronômicos, o que potencialmente poderá
comprometer a qualidade de vida de todos os membros da família. Este ponto de
vista não defende, obviamente, que um ser humano adulto com síndrome de Down
deva ser sacrificado; haja vista que ele já desenvolveu algum potencial
cognitivo, possivelmente possui aspirações, possui um sistema nervoso que lhe
permite sentir dor ou prazer, etc. - a questão central a ser levantada é em
relação ao momento que possibilitaria uma decisão de abrir mão de um membro da
família que levará uma vida potencialmente miserável, ainda enquanto um
embrião. Um casal fértil e saudável poderia optar por escolher ter um novo
filho, saudável, sem que isso seja moralmente ou eticamente errado. Baseando-se
num hipotético ‘cálculo de felicidade’, partindo do nosso exemplo, um filho
saudável traria muito mais alegria aos pais e a ele próprio teria uma vida em
condições plenas.
Peter Singer, como
especialista na aplicabilidade da ética, amiúde utiliza exemplos para ajudar a
elucidar entendimentos teóricos. Em seu livro Should the Baby Live?, sem versão em português, escrito em parceria
com Helga Kuhse, ele narra um caso bastante simbólico: um dos casos mais
extensamente publicados de um infante anormal ter sido deliberadamente permitido
morrer. É o “Caso John Hopkins”, nomeado desta forma por ter acontecido no
hospital de mesmo nome, em Baltimore, nos Estados Unidos. A criança tinha
síndrome de Down e um bloqueio no seu sistema digestivo. O bloqueio poderia ter
sido removido por cirurgia, mas a mãe da criança, que era uma enfermeira,
recusou-se a autorizar a operação. O pai aceitou a decisão dela, adotando o
ponto de vista de que sua esposa tinha muito mais conhecimentos sobre estes
casos em relação ao que ele poderia ter. Então, o bebê permaneceu sem
tratamento. Ele não poderia digerir qualquer comida que fosse inserida em sua
boca, e nenhuma tentativa foi executada para alimentá-lo de outra maneira. O
bebê levou quinze dias para morrer.4
Uma versão dramatizada de
eventos como esse foi transformado em um filme intitulado Quem Deve Sobreviver? [Who Should Survive?]. O filme mostra como,
após os pais terem tomado suas decisões, o bebê é colocado num local da sala
com uma advertência escrita: “NADA PELA BOCA”. Enfermeiras são mostradas
balançando os bebês chorosos, tentando confortá-los. O filme discute o quanto foi
difícil para a equipe de enfermagem ser incapaz de fazer qualquer coisa além de
olhar os bebês definharem por desidratação e fome. O filme também mostra o
médico conversando ao telefone com o pai do bebê, ao qual ligava diariamente
para comunicar ‘como as coisas iam indo’. Esse médico não podia falar nada,
exceto que tudo estava acontecendo como alguém esperaria, só que lentamente.4
Tal filme foi mostrado a
estudantes de Filosofia, numa cadeira de Ética com ênfase em ‘Problemáticas
Morais Contemporâneas’. Não surpreendentemente, os que assistiram o filme
consideraram-no perturbador. A maioria dos que assistiram acreditavam que
aquilo não deveria ter acontecido. Menos previsível, contudo, é que não foram
todos que discordaram da decisão dos pais de refutar a permissão para a
operação, e o que a extensa maioria deles considerou questionável não foi a
decisão de que um bebê com síndrome de Down não deveria ser mantido vivo; eles
objetam, factualmente, a maneira pela qual essa decisão foi executada. Eles
ficaram horrorizados que a morte dos recém-nascidos tenha tido a necessidade de
ser lenta, em aproximadamente quinze dias de pura agonia para as enfermeiras
que os acompanhavam, para os médicos, para as famílias e, principalmente, para
os bebês.4
O questionamento mais recorrente foi sobre o porquê de
eles terem sido mantidos vivos ao invés de terem sido submetidos a uma morte
rápida e indolor logo de início, que os pouparia de tanto sofrimento.Referências:
¹ SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
² VARELLA,
Drauzio. Macacos. São Paulo:
Publifolha, 2000.
³ MILL,
J. S. Sobre a Liberdade. Lisboa:
Edições 70, 2010.
4 SINGER,
Peter; KUHSE, Helga. Should The Baby
Live? The Problem of Handicapped Infants. Oxford: Oxford University Press, 1985.
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